
O escritor Emmanuel Carrère falou com o JN sobre o seu regresso ao cinema, com "Ouistreham - Entre Dois Mundos". O filme, um raro retrato do trabalho no cinema francês, já está nas salas.
Já está em cartaz "Ouistreham - Entre Dois Mundos", onde Juliette Binoche é uma mulher que chega a Caen, para trabalhar nas limpezas dos barcos que fazem a ligação noturna com Inglaterra. O filme baseia-se no livro de não ficção da jornalista Florence Aubenas, que seguiu o mesmo percurso, sem explicar às outras mulheres porque razão ali estava a trabalhar. O escritor Emmanuel Carrère é "chamado" uma vez mais ao cinema, para dirigir este raro retrato do trabalho no cinema francês.
É o seu primeiro filme desde 2005. Por que razão lhe deu vontade de pegar de novo na câmara de filmar?
Foi a proposta de fazer este filme. Ao mesmo tempo inesperada e irresistível. E apercebi-me, ao falar há pouco tempo com a Juliette Binoche, que começámos a discutir este projeto em 2012. Foi há dez anos que ela começou a andar atrás da Florence Aubenas, que não queria vender os direitos do livro. Nunca percebi bem porquê, ela disse que só os vendia se fosse eu a fazer o filme.
Qual foi a sua reação?
É claro que fiquei muito honrado. E pensei: porque não? Compreendi que era um desafio magnífico fazer qualquer coisa com aquele livro, que é tão apaixonante. Foi um processo muito longo, discutimos muito. E eu estava a terminar o meu livro, "O Reino".
Depois teve de adaptar o livro, que também não deve ter sido tarefa fácil.
O processo de escrita do argumento também foi longo. E de casting, de ateliês com as atrizes. Tudo isso fez com que só tivéssemos filmado na primavera de 2019. Acabámos o filme no início de 2020 e todos sabem o que aconteceu depois.
Mas como é que foi transformar o livro, que era de não ficção, numa obra de ficção?
O equivalente do livro em filme seria um documentário. E um documentário com a câmara escondida. Fazer um filme puramente documental, uma crónica, não me interessava muito, não sabia muito bem como iria ser.
A ficção foi sempre a única opção?
Para contar aquela história, precisava de a ficcionar, de a dramatizar. De mostrar que, mesmo que seja por uma boa causa, a personagem central mente. Não engana, mas mente. É o problema deontológico de muitos jornalistas.
Enquanto escritor, alguma vez se viu nessa situação?
Não propriamente. Porque simplesmente não é essa a minha técnica. Nunca fiz o que se chama jornalismo de imersão. Se quero escrever sobre neonazis, não iria ter com eles e dizer-lhes que também era um neonazi. Diria que a vida deles me interessava, enquanto seres humanos e que não os considerava necessariamente como assassinos, o que penso sinceramente, e que queria saber mais sobre eles. Se estiverem de acordo em falar comigo e em que eu passe algum tempo convosco muito bem, caso contrário, não há problema.
Qual tem sido a sua experiência?
Geralmente as pessoas aceitam. Mas é verdade que, no caso da imersão da Florence, ou da Marianne, no filme, obtêm-se coisas que não se conseguem obter de outra forma. Sobretudo a experiência real, física, do cansaço e da dureza do trabalho. Isso não se conseguia à mesa de um café, a conversar.
O livro já tem alguns anos. A condição de vida daquelas mulheres sofreu alguma alteração?
O que é descrito sobre a vida das mulheres da limpeza não mudou em nada. A situação até talvez tenha piorado. A história é de uma atualidade total. Os salários continuam a ser muito baixos. E a dificuldade é não só ter um trabalho, mas ter de fazer umas horas aqui, outras ali.
Que experiência é que aquelas mulheres lhe transmitiram?
Uma delas disse-nos que o patrão lhe tinha feito um contrato para trabalhar exatamente nas mesmas horas que os outros empregados. Assim, ela limpa o escritório enquanto as pessoas estão a trabalhar, não antes deles chegaram. O facto de poderem falar, interagir, já é muito bom. As mulheres da limpeza deixam de ser como fantasmas, que ninguém vê. Muda muita coisa, pelo menos em termos de dignidade.
Essa situação ainda deve ser a exceção...
Sim, é uma abordagem positiva, mas muito rara. Mas podia ser menos rara. Os patrões que resolveram fazer o mesmo dizem que funciona. É uma questão de cultura de empresa.
Pensa que o cinema francês tem uma certa falta de contacto com a realidade social do país? Quando há, é quase sempre um olhar exterior.
Não é sempre esse o caso, há exceções. Veja, por exemplo, os filmes do Stéphane Brizé, como "A Lei do Mercado". Tenho a impressão que o filme que fiz vai também no mesmo sentido. Mas é verdade que o cinema francês não tem figuras como os irmãos Dardenne ou Ken Loach, que são os mestres desse tipo de cinema. Mas também não é o vazio, há pelo menos um esforço, em França.
Como é que se passou entre a Juliette Binoche e as outras atrizes, que no fundo estavam a representar os seus próprios papéis?
Se há alguma coisa de conseguido no filme, é isso. A Juliette chegou nas vésperas do início da filmagem. Começámos a filmar uma segunda-feira e jantámos todos juntos pela primeira vez no sábado anterior. É claro que as outras mulheres a esperavam com alguma inquietação. Com curiosidade, mas também com alguma desconfiança. Mas em dois dias essa desconfiança caiu por terra.
Qual foi o segredo para que isso tivesse acontecido?
O termo que me vem à cabeça para descrever a atitude da Juliette é gentileza. Foi incrivelmente gentil com elas e tudo se tornou simples. A rodagem foi dura, é certo, mas gratificante do ponto de vista humano. E divertimo-nos todos juntos. E a Juliette dirigiu-as, o que eu não faço. Foi como uma bailarina maravilhosa que ensinou as outras a dançar. A atmosfera foi sempre muito calma, muito amigável, familiar mesmo, e isso também graças a ela. E foram todas muito profissionais, cada qual à sua maneira.
Qual foi a reação delas ao ver o filme?
Mostrei-lhes o filme em fevereiro de 2020, ninguém imaginava o que ia acontecer. Estávamos todos convencidos que íamos a Cannes. Eu estava muito nervoso, com medo que não gostassem do filme. Seria muito triste. Mas adoraram. Algumas não gostaram de se ver, mas isso acontece com todas as atrizes. E dois anos depois, há entre elas uma verdadeira amizade e solidariedade.
O que é que o cinema lhe dá que a literatura não consegue?
Isto mesmo de que temos estado a fazer. Organizar coisas, juntar pessoas. Dar vida a histórias como estas. Pôr a câmara â frente de coisas que se estão a passar. Esse lado humano não se pode ter num livro. Quando se escreve um livro estamos sozinhos, apenas com nós próprios.
