Com o documentário "A nossa terra, o nosso olhar", esta semana em exibição, o cineasta conta como foi criar um filme sobre uma comunidade com uma história difícil, de um bairro em desmantelamento.
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Começa com uma festa de aniversário de um garoto, termina com a imagem de uma mulher, de rosto duro, olhando pela janela um futuro incerto. "A nossa terra, o nosso olhar" acompanha algumas famílias do Bairro do Aleixo, antes da demolição das torres. Um retrato sensível de gente como nós, à beira de uma mudança anunciada. E um ponto de rutura na cidade do Porto, seguramente. Na semana em que o filme está em exibição no Cinema Trindade (Porto) e na Casa do Cinema (Coimbra), o realizador, André Guiomar, fala ao JN sobre aquela que é a sua primeira longa-metragem.
Como é que teve a ideia de realizar este documentário?
Em 2013 estava a fazer uma ficção do Luís Vieira Campos chamada "Bicicleta", escrita pelo Valter Hugo Mãe. Ao longo daquelas várias semanas pude entrar livremente nas casas e nas vidas de um bairro "proibido", um bairro onde nos aconselhavam a não nos aproximarmos. Um local cheio de estigmas e preconceitos. O que encontrei foram várias famílias com histórias difíceis, complexas, com um grande sentido de abnegação e coragem e um espírito gigantesco de pertença a um lugar.
O que sabia do bairro antes de lá entrar?
Sabia que era uma comunidade que tinha sido realojada da Ribeira para ali em 1974 e que estava rodeada de fatores sociais, económicos e até arquitetónicos que tinham provocado um efeito de gueto no bairro. Achei que era urgente documentar e fazer um filme comunitário antes do seu desaparecimento, sobre um espaço e sobre uma rede social que se foi construindo de uma forma muito peculiar e que não mais será repetível, não é replicável. Lancei o mote à produtora e de uma forma bastante urgente montamos uma equipa muito pequena, muito especial, que pudesse voltar ao bairro diariamente e tentar construir um filme com aquelas pessoas.
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Como é que foi recebido no Aleixo?
Fui sempre recebido de portas abertas, sempre prontos a oferecerem um almoço, um café, um bocado de conversa, algumas lamentações e saudades do que era o bairro. E as relações são isto: trocas de experiências, partilhas de bem-estar, de cuidar, de tempo para ouvir.
Qual foi o seu método de trabalho?
Aparecia sempre com a câmara e com o tripé, para criarmos uma habituação, uma rotina. Depois tenho muitas semanas de filmagem que eu sei que não vou utilizar, mas que são muito importantes precisamente pela presença. E querendo fazer um filme comunitário, o que me interessa aqui é quando passamos a fase em que eu estou a criar e a pedir, para a fase em que as pessoas estão a criar comigo e dizem "olha, hoje à noite vens porque é o aniversário do meu filho e é importante que tu estejas" ou "hoje à noite vens porque vamos fazer uma homenagem à morte do Israel". Este tipo de "evolução" na nossa relação é importante para um realizador de documentários deste género. A confiança ganhou-se e o respeito mútuo está lá..
Como é que se processou a escolha das famílias que protagonizam o filme?
Eu tenho um processo curioso em que nunca sei à partida quem vão ser os protagonistas nos meus documentários. Ou melhor, acho que sei, mas a câmara mostra-me sempre novos caminhos. Reconheço perfeitamente os momentos em que estou concentrado a filmar e a minha atenção é sugada numa direção que não esperava e que me vou apercebendo que o meu interesse, afinal, está ali. Uma espécie de magnetismo. No Aleixo foram as famílias que me "chamaram" naturalmente a atenção, não sou só eu que as procuro propriamente. Curiosamente, as famílias que mais acompanhamos em 2013 foram as últimas a sair do bairro em 2019, as que mais sofreram com esta espera em suspenso. Coisas do cinema e da vida.
As primeiras sequências são de 2013, há depois um salto de seis anos, o filme estreia em 2020. Como é que se mantém aceso um projeto durante quase uma década?
Quando decidimos enveredar numa área como o documentário temos de estar conscientes que não controlamos tudo, tal como na vida. Ao contrário da ficção onde escolhemos quando filmar, onde filmar, quem são os atores, o que trazem vestido e conseguimos controlar todos os tempos, no documentário temos de estar abertos ao que a vida, acidentalmente ou não, nos vai dando, ter a capacidade de encaixe desses novos aspetos inesperados e ter o discernimento de utilizá-los a nosso favor. O filme só acaba quando acharmos que ele acabou. E para mim foi sempre muito claro que se o Bairro do Aleixo nunca fosse totalmente destruído, o meu filme também não teria um fim. Vivo bem com isso, ou melhor, aprendi a aceitar que é mesmo assim.
Mostrou o filme já feito às pessoas que filmou? Qual foi a reação?
A estreia do filme no Porto/post/doc em 2020 foi muito especial, porque a sala estava cheia de famílias do bairro misturadas com espetadores de vários sítios. E todos me vieram dizer no final que foi incrível assistir ao filme com os constantes comentários e lembranças que os habitantes faziam questão de expressar. Riram muito, choraram ainda mais, e acho que este filme fez sentido ser mostrado e sentido assim, em conjunto, com vida, à Aleixo. Fica "apenas" a tristeza de nunca poder mostrar o filme ao Zé da Bina, talvez o principal protagonista do filme, a pessoa que mais acreditava no projeto e que faleceu pouco depois do realojamento e antes da estreia. Mas tenho a certeza que ia adorar, o filme era sobretudo dele.
Continua em contacto com aquelas famílias?
Sim, obviamente. Menos vezes do que desejávamos, mas as visitas e as relações não se extinguiram ali. Um dos resultados disso foi o mais recente filme que realizei juntamente com o Luís Costa e que estreou no Curtas Vila do Conde: "Saturno". Um filme que tem um protagonista do Bairro do Aleixo.
Do que sente no seu dia-a-dia, qual é a impressão geral que os portuenses têm deste "episódio" todo? O Aleixo é uma ferida na cidade que vai demorar a cicatrizar?
Certamente nunca cicatrizará para as pessoas que lá viveram. Para a cidade, obriga a uma reflexão sobre que espaço estamos a criar para os habitantes da cidade.
O que espera da estreia do filme em sala?
Tal como quando tivemos a estreia no festival de cinema, gostava muito de voltar a ver as salas do Porto (e Coimbra) cheias. É para isto que filmamos, de pouco serve gastar sete anos de trabalho para depois mostrar o filme num computador a uns amigos. O que queremos é que vejam, que se discutam as leituras e visões que se fazem ao vê-lo e que as partilhem. Gostava muito de saber o que veem e como veem os outros algo que eu conheci tão de perto. O que lhes fica depois do filme, o que levam consigo para casa.
Em que está a trabalhar neste momento?
Para além de me dedicar quase a 100% à produtora que criamos no Porto (Olhar de Ulisses) tenho estado a trabalhar na minha segunda longa documental passada em Moçambique. Fomos interrompidos pela pandemia em 2020, mas conto regressar ainda este ano às filmagens.