Giuseppe Tornatore fala com o JN acerca do documentário que realizou sobre o compositor e maestro italiano.
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Giuseppe Tornatore foi presidente do júri internacional do Red Sea International, festival de cinema que decorreu no fim do ano passado em Jidá, na Arábia Saudita. O realizador aproveitou a ocasião para exibir o seu documentário "Ennio", sobre a imensa carreira de Ennio Morricone. Sem dúvida o maior compositor de música para cinema, Morricone morreu em julho, aos 91 anos, tendo assinado mais de meio milhar de partituras, entre as quais as de todos os filmes de Tornatore, depois de "Cinema Paraíso". O realizador falou com o JN sobre esta parceria.
Quando foi convidado para presidir ao júri, pensou duas vezes?
Nunca tinha estado aqui. Quando me convidaram, aceitei de imediato. Estava intrigado por saber que neste país não tinha havido cinema durante 35 anos. Estar num país onde o cinema está a começar do zero é fascinante para mim.
Como é que tem estado a decorrer esta experiência?
Estou muito contente por ter aceitado o convite. Tem sido uma experiência magnífica ver as pessoas fazerem fila para ir ao cinema, para experimentarem a novidade. Na Europa a situação é oposta, as pessoas estão com medo de ir ao cinema. É muito reconfortante aquilo a que tenho assistido aqui.
Estamos perto de nova entrega de Oscars e "Ennio" pode vir a ser nomeado. O que significa para si, como italiano, tudo aquilo que gira à volta dos Oscars?
Já me aconteceu uma vez e vivi-o como uma grande experiência, como uma gratificação universal. Prova disso é que o filme em causa, o "Cinema Paraíso", é ainda tanto amado em todo o Mundo. As pessoas identificam-se muito com ele. Não diria que os Oscars são um prémio específico da indústria norte-americana. Para mim, são verdadeiramente internacionais.
Uma nomeação para o "Ennio" seria uma derradeira homenagem a Morricone.
O verdadeiro prémio foi ter conseguido fazer o filme. Foi um processo muito complicado, sobretudo por causa da pandemia. Ganhar ou não um prémio é algo em que não estou a trabalhar. Se for o caso, ficarei felicíssimo, sobretudo pela relação de profunda amizade que me ligava, e liga ainda, a Ennio Morricone. Mas tenho de ser honesto, quando faço um filme, é o meu filme. E quando o termino, gosto que ele faça o seu percurso. Deixo-o ser livre.
Pode recordar o momento em que conheceu Ennio?
Recordo-me perfeitamente, foi em janeiro de 1988. Foi o produtor do "Cinema Paraíso" que me propôs convidar o Ennio Morricone para fazer a música do filme. Eu disse que seria magnífico, mas que não acreditava que Morricone aceitasse fazer a música de um realizador desconhecido. O produtor telefonou-lhe e ele realmente disse que não.
Como veio a mudar de ideias?
O meu produtor insistiu e mandou-lhe o guião. Dois dias depois, o meu telefone de casa tocou. Era o Morricone a dizer que queria encontrar-se comigo. Fui ter com ele e disse que tinha gostado do filme, que estava particularmente impressionado com o fim e que já tinha uma ideia para a música. Perguntou-me se queria uma música folk, do tipo siciliano. Quando lhe disse que não, ele disse-me logo que fazia o filme. Desde aquele momento, tudo o que fiz - filmes, documentários, publicidade - foi com música dele.
No filme, Morricone diz que gosta que os realizadores lhe concedam liberdade para criar a sua música. Que tipo de realizador é, nesse particular?
Controlo tudo. E controlava a música, juntamente com o Ennio. Creio que era esse o segredo da nossa relação, estruturávamos a música juntos, mas deixando-lhe toda a liberdade para criar. Ele gostava de trabalhar com realizadores que eram ativos nessa matéria, tinha medo de realizadores que não interagissem com ele.
A cantora portuguesa Dulce Pontes aparece várias vezes no seu documentário, em concerto com o Ennio, e a falar dele.
Eu adoro a Dulce Pontes. É uma artista enorme. E sei que o Ennio Morricone a adorava também.
O cinema mudou bastante desde que fez o "Cinema Paraíso".
Já passaram trinta anos. A novidade mais importante é a transformação da linguagem. O sistema digital revolucionou a linguagem audiovisual. As histórias contam-se hoje de maneira diferente, porque a linguagem da imagem mudou. Estamos no meio de uma revolução formal e, no meio dessa revolução, o cinema está mais envolvido na exploração e na busca de temáticas humanas do que estava há trinta ou quarenta anos.