Gonçalo M. Tavares abre uma nova linha da sua obra com “As botas de Mussolini”, uma imersão fragmentada em acontecimentos e personalidades históricas.
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A “advertência” chega ao leitor mesmo antes de embrenhar-se nas páginas de “As botas de Mussolini”: esta é “uma prosa sonoramente pensada e partida para ser lida em voz semialta”. Não por devaneio de Gonçalo M. Tavares, mas por acreditar cada vez mais no “entendimento que vem do ritmo e do som da linguagem de frente para os acontecimentos”.
A recomendação ganha foro de prerrogativa assim que o leitor mergulha nestes textos soltos que proporcionam saltos temporais imprevisíveis. Do momento em que a voz do imperador Hirohito chegou pela primeira vez aos seus súbditos, para anunciar via rádio a rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial, à tragédia pessoal imensa do arquiteto Frank Lloyd Wright, cuja família foi morta por um funcionário demente, são múltiplos os ecos da “História fragmentada do mundo”, precisamente o nome desta nova linha da sua já vastíssima obra (quase meia centena de títulos em pouco mais de 20 anos).
Tal como “Diário da peste”, o que há a reter destas imersões sucessivas é uma forma de entendimento do real, a partir da acumulação avulsa de elementos factuais. As diversas camadas de que se constrói a realidade são assim decompostas com a precisão e a minúcia de um cientista no decurso das suas investigações.
Mais do que respostas, são as ligações inextricáveis entre acontecimentos separados no tempo e no espaço o que parece motivar o autor.
A tragédia ronda de perto estes textos, mas o momento sobre o qual Tavares se debruça é exatamente o anterior, quando a eclosão do medo é apenas um prenúncio, ainda que muito forte. Sentimo-lo quando lemos o fragmento relativo a Enrico Fermi, o físico italiano que, antes de apresentar o primeiro reator nuclear, medita sobre o impacto brutal da sua criação, que “exigirá do humano uma nova triste forma de fechar os olhos”.
Ou a memória igualmente distante do casamento de Marilyn Monroe e Arthur Miller, quando o sorriso estampado nos rostos já parecia conter uma breve sombra. “No final, diluída no escuro, a luz perdeu por muitos”, escreve.
Contrariamente à batida expressão popular segundo a qual “para a frente é que é caminho”, o autor de um “Um homem: Klaus Klump” mostra-nos como as indicações mais certeiras para o presente residem tantas vezes no passado.
“As botas de Mussolini”
Gonçalo M. Tavares
Relógio D’Água