A premiada realizadora tunisina Erige Sehiri brinda-nos com “Debaixo das Figueiras”, já nos cinemas portugueses.
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Num pomar da Tunísia, um grupo de homens e mulheres chega cedo pela manhã para apanhar figos. Ao longo de um dia de trabalho, acompanhamos os desejos e anseios sobretudo das mais jovens, e mais irreverentes. “Debaixo das Figueiras”, estreado na Quinzena de Cannes, é um filme naturalista, que nos mostra como há uma noga geração de jovens árabes que querem a mudança. O filme já está nos cinemas.
O seu filme fala da situação da mulher árabe, neste caso na Tunísia. Como é que a compara com outros países vizinhos?
Depende sempre da região e do meio social. Neste caso é um meio social muito particular, porque são mulheres que vivem no campo. Não queria cair no que é esperado, mostrar as mulheres árabes como vítimas do patriarcado, de uma certa violência. Mesmo que na realidade o sejam, e no filme sente-se isso., o patriarcado, a mentalidade, a relação entre homens e mulheres. Mas queria sair precisamente disso, de as ver individualmente, cada qual com a sua mentalidade.
Aos poucos, o seu olhar vai-se centrando cada vez mais nas mais jovens.
Elas são já muito diferentes, na sua forma de pensar. Ao mesmo tempo, quis mostrar que uma revolução passou por ali. Mesmo que estejam tão fechadas socialmente como as mais velhas, por razões económicas, e no filme vemos como vão todas na mesma camioneta, há qualquer coisa de diferente na nova geração, que é a liberdade da linguagem. A maneira como aquelas raparigas se exprimem.
Há também uma camada política, de denúncia da exploração do trabalho, com a figura do capataz.
A realidade é ainda mais dura. Escolhi expressamente uma recolha de figos. Para começar é um pomar, protegido do sol, as condições de trabalho são diferentes. Há um lado familiar, de aldeia. Na Tunísia não há muitos pomares. As grandes explorações são de olivais ou de batatas, onde as condições de trabalho sã mais difíceis, a apanhar sol o dia todo. Numa exploração de figos há qualquer coisa de mais doce, que achei interessante, porque dava uma certa ideia de Jardim do Éden. Mas sim, estamos próximos da realidade.
Há alguma outra simbologia em especial com os figos?
Na origem era por outras razões. Queria trabalhar a relação homem-mulher, antes mesmo de me interessar pela condição da Mulher. Na recolha dos figos há uma fecundação que é feita, uma polinização entre o figo macho e o figo fêmea. Achei que era uma bela metáfora. E os figos não estão todos maduros no mesmo momento, são colhidos em momentos diferentes mesmo na mesma árvore.
Há também aí uma outra metáfora?
Achei que era muito representativo das minhas personagens femininas, que não estavam todas no mesmo nível de maturidade. Falamos muito da maçã, mas nunca da folha da figueira como inspiração da Bíblia ou mesmo do Corão. Achei que havia qualquer coisa de poético e para mim o cinema deve ter essa poesia, caso contrário não me interessa.
O filme passa-se quase todo debaixo das árvores. Pode falar um pouco das dificuldades técnicas e artísticas do dispositivo?
Por vezes as dificuldades transformam-se em qualidade artística. Muito cedo percebi que podia contar a história que queria num espaço fechado e ao longo de um único dia. Quis trabalhar essa metáfora de um país que é tão solarento, tão belo, com praias muito bonitas e belas paisagens, Venderam-nos sempre a ideia de um país bilhete-postal. Dizemos que a miséria é mais bela ao sol, mas quis trabalhar essa contradição entre a beleza do local e as dificuldades pelas quais as pessoas podem passar.
E as potencialidades ou obstáculos do espaço fechado?
Não é exatamente uma referência teatral, mas é também um espaço de expressão, onde se vai, de forma quase etnográfica, captar momentos de diálogo e de conversa, onde as personagens entram e saem da imagem. É contemporânea, mas pode ser intemporal, porque não sabemos onde nem quando se situa. Um espaço fechado mas livre, onde podia explorar as relações humanas sem ter grandes preocupações com os cenários.
Ao nível da imagem também deve ter sido complicado gerir a luz a passar através dos ramos das figueiras.
Fi-lo com uma magnífica diretora de fotografia, Frida Marzouk, que originalmente trabalhava no departamento elétrico e se ocupava da luz. Eu sabia que este filme ia ser rodado com luz natural e é nestes momentos que devemos trabalhar com pessoas que compreendem a luz. Ela fez um trabalho excecional, era preciso ir à procura dos bons momentos. E o filme foi rodado em dois anos diferentes, quando se passa apenas durante um dia. Na segunda vez era preciso encontrar a mesma luminosidade.
Mas porquê filmar em dois anos diferentes?
O filme começou por ser auto financiado. Foi preciso algum tempo para financiar a sua continuação. Foi um filme difícil de financiar a partir de um guião. Era preciso convencer a partir do filme, dele próprio. É preciso acreditar no que se faz, porque por vezes não funciona nos moldes habituais.
Como é que essa dinâmica funcionou com a própria apanha dos figos?
A apanha faz-se durante um período muito curto. Seria necessário mudar de local de filmagem. Os pomares não são suficientemente grandes para que se possam colher figos durante dois meses de rodagem. Fizemos a primeira apanha e esperámos pelo ano seguinte para poder continuar a filmar.
Como é que escolheu as jovens do filme?
Não são atrizes profissionais, descobri-as naquele pomar, elas fazem aquele trabalho. Quando viram o filme disseram que era 99% realista. A vida delas é assim. O que tentei foi não procurar nem o melhor nem o pior do trabalho delas.
Como é que as transformou em atrizes?
Fazendo muitos ensaios. Mesmo durante o casting fiz-lhes ler muitas cenas do filme e escolhi as que tinham essa inteligência da representação, uma certa naturalidade, uma capacidade de improvisar, de esquecer que a câmara estava lá. Foi um processo longo. De início elas achavam que não eram capazes de o fazer, com tanta gente à volta delas. O que ajudou foi que as fiz fazer uma verdadeira recolha de figos. Por vezes, esqueciam mesmo que estavam a fazer um filme.
Ao fim do dia, de volta na camioneta, as mais jovens cantam e maquilham-se. É realista ou há algum simbolismo nessa cena?
Essa cena foi a primeira que filmei. Tem havido muitos acidentes naquelas camionetas estes últimos anos na Tunísia, porque as mulheres estão de pé na caixa aberta e basta uma viragem mais brusca para caírem. Não quis que o filme fosse um drama, mas isso inspirou-me. Podemos ver o olhar das mulheres mais velhas que se fecha, a luz que diminui, os dois idosos que se encostam um ao outro. E, ao mesmo tempo, a despreocupação daquelas raparigas que cantam, como se tivesse sido o dia mais belo da vida delas. Está já tão enraizado nelas que já nem veem o drama.
Elas gostaram de se ver no ecrã?
Adoraram. Riram-se muito e ficaram todas muito comovidas com a cena final. Há qualquer coisa no trabalho agrícola que transmite uma certa nostalgia. É por isso que há tantas emoções no filme. Quando se trabalha em grupo é como se fôssemos da mesma família. Há uma certa alma em todos os filmes que falam do trabalho no campo.
Há alguma coisa de pessoal, no filme?
Eu nunca vivi no campo, mas o meu pai cresceu naquele local. Eu podia ter sido uma daquelas raparigas se o meu pai não tivesse emigrado para a Europa, em busca de trabalho. Eu vivi num bairro dos subúrbios, rodeada de betão, e não no meio de árvores. Há no filme qualquer coisa de nostálgico, da minha parte. Mas mantendo-me sempre no domínio realista e terra a terra.
Nestes últimos anos temos visto vários filmes feitos por mulheres do mundo árabe. Como vê este movimento, se assim o podemos chamar?
Na Tunísia as mulheres tiveram sempre direitos mais avançados, sobretudo por comparação com os outros países da região. Havia já uma predisposição no país para a chegada de várias mulheres realizadoras. E houve na região uma revolução, há uma nova geração em rutura com a geração anterior. Mas penso que a força das mulheres nos nossos países já existe há muito.
Pensa que o ocidente tem uma visão enviesada da situação da mulher árabe?
O ocidente gosta de pensar que a vida é difícil para nós. É verdade que é difícil. Mas sempre houve uma sociedade civil onde as mulheres foram combativas, na Tunísia e em outros países. Sempre existiu mas não se via. A revolução árabe, a diáspora, a emigração, trouxe também esse fruto.