
Leonardo António fala do seu filme "Submissão"
Paulo Spranger/Global Imagens
Leonardo António fala do seu filme "Submissão", esta quinta-feira nas salas de cinema
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Dez anos depois de "O Frágil Som do Meu Motor", Leonardo António volta ao cinema, com "Submissão". O filme, já premiado internacionalmente, chega agora às nossas salas de cinema, abordando o tema da violação segundo uma perspetiva original, tratando-se de violação no quadro do casamento. Iolanda Rodrigues enche o ecrã, de princípio a fim, a esse fim surpreendente, enquanto temos a possibilidade de assistir ao último trabalho de Maria João Abreu, que nos deixou no ano passado. O realizador explicou-se ao JN.
O filme tem um tema forte, necessário, urgente, mas com uma perspetiva original. De onde partiu a ideia?
Um amigo meu psiquiatra, que foi chefe dos serviços de psiquiatria do Hospital de Santa Maria, num jantar onde estávamos a falar sobre quais eram os principais problemas de psiquiatria na sociedade portuguesa, respondeu-me que era a violação no matrimónio. Foi algo que me assombrou. Pareceu-me que era um assunto que existia à minha volta, mas era tabu.
Que tipo de investigação fez para escrever o guião?
Vi muitas pessoas que sabia que tinham passado por isto. Sobreviventes. E também agressores. Que tinham passado por situações imprevisíveis. Um dos aspetos que achei importante realçar é que isto pode acontecer a qualquer pessoa. Nunca nos conhecemos a cem por cento ao ponto de dizermos que nunca vamos fazer isto ou aquilo. Há momentos na nossa vida em que não sabemos como nos vamos comportar.
E com as instituições?
Depois de falar com agentes da polícia, com juízes, com advogados, com psicólogos, com a APAV, reparei que, às vezes, as próprias pessoas não conseguem perceber que se estão a envolver numa violência que não querem. Mas aguentam. E isso é que é o catalisador para a escalada da violência doméstica e do homicídio.
Que tipo de discussão espera que o filme levante?
Os números não mentem. Esta realidade está presente na sociedade portuguesa e espero que o filme seja uma forma de quebrar o tabu. Aspetos que são conjugais, que são relacionais, que são identitários. Achei através da pesquisa que estava a ir pelo caminho certo, e se calhar era preciso falar disto, porque faz parte de inúmeras relações.
A cena com a médica quando recebe a vítima após a violação é brutal, é mesmo assim que acontece?
Eu tinha pessoas na produção a quem pedia para ir buscar dispositivos que fazem parte destes processos de violação. Pedi-lhe para ir à Medicina Legal pedir um kit de violação. Ou seja, o que um médico de medicina legal costuma usar quando recebe um pedido de apoio neste sentido. E associado ao kit está um leque de perguntas. Quando as vi, e já estávamos em rodagem, percebi que as tinha de pôr no filme.
As cenas de terapia em grupo baseiam-se em depoimentos que recolheu ou é pura ficção?
O que a APAV me disse foi que, por norma, não existem terapias de grupo. Essas sessões são desenvolvidas e organizadas por pessoas que podem estar ligadas à APAV e que criam uma dinâmica para ajudar sobreviventes de violência doméstica. Não obstante, existem estes grupos. A APAV não os promove, mas direciona sobreviventes para pessoas que depois aconselham a entrar nestes grupos. Os diálogos que lá coloquei foram de outra índole.
Em que sentido, então?
Eu sou apaixonado pela psicanálise, pela psicoterapia. E acho que é uma área a que muita gente devia reconhecer a utilidade. Tentei transmitir nesse diálogo aquilo que eu posso valorizar dessa disciplina, dessa área do pensamento. O psicossomático é um dos indicadores para se resolver problemas, para se estar atento ao nosso corpo. Como isto é um filme sobre um ataque ao corpo, achei necessário falar do psicossomático.
Tudo o que tem a ver com a área legal é muito interessante. É completamente realista?
Eu fiz uma primeira versão da cena do tribunal, quase como se fosse um espetador. Ou seja, eu gostava que num tribunal acontecesse isto. E depois confrontei advogados que me disseram, isto está bom, isto não pode ser assim, as coisas não se passam assim. Então fui revendo toda a cena do tribunal nesse sentido, com o acompanhamento de consultores. Pessoas muito experientes na área do crime que me informaram como se aborda as pessoas, qual a disposição da sala. Depois fiz o mesmo com os juízes.
Mostrou-lhes o filme quando ficou pronto?
Mostrei a advogados e juízes que me disseram que a cena do tribunal devia ser vista por todos os alunos de Direito. Não pela estrutura que apresenta do tribunal, mas pelo raciocínio das personagens. O âmbito legal e a aplicação da lei têm limites. Neste caso, a vítima de uma violação é designada como assistente, só porque é um crime público. E eu gostava de denunciar, através do cinema, que é preciso repensar esses termos. Somos humanos e quem se senta naquelas cadeiras, quem está a ser julgado tem emoções, tem uma dimensão emocional. E um ambiente claustrofóbico, sufocante, moroso, mói, nunca mais acaba. Quer se queira quer não há uma exposição emocional.
O final pode parecer surpreendente. O que lhe disseram os especialistas?
Quando confrontei o acórdão do filme com os juízes, no Centro de Estudos Judiciários, percebi que estava no bom caminho. Eram três, das altas esferas, e dissemos todos ao mesmo tempo qual era o acórdão. Foi gratificante, não estava a fazer nada que não fosse realista. Infelizmente os acórdãos são vistos como uma aplicação da lei com um limite que não permite que seja mais em conta com aquilo que sentem. Há questões emocionais nas relações humanas a que nenhum âmbito legal consegue encontrar justiça. E isso é para refletirmos.
O filme vive muito da Iolanda Laranjeiro. Como é que a descobriu?
Quando iniciei o processo de escrita do filme e a imaginar o filme pensei que só o iria fazer se encontrasse uma Meryl Streep portuguesa. Porque tinha que ser uma atriz que carregasse o filme. Depois conheci a Iolanda e foi o que me motivou a arrancar com o filme. A Iolanda é uma atriz excecional, tem uma sensibilidade que é bastante fora do comum. Isso permitiu-me explorar a personagem da Lúcia a uma escala que era necessária para aguentar o filme.
Como é que ela aguentou a carga psicológica da personagem?
Teria de lhe perguntar a ela. Mas assim que acabámos de filmar houve uma descompressão. Eu ainda vivi o filme na montagem. Ainda hoje vivo o filme, de cada vez que o vejo. Desenvolvemos uma espécie de estranheza freudiana quando entregamos o filme ao mundo. Quando o vi com público pela primeira vez, senti coisas diferentes. O cinema precisa de público, não é uma arte solitária.
O filme pode ser visto também como uma homenagem à Maria João Abreu...
Lamentavelmente, foi o último filme dela. Guardo recordações ótimas da Maria João. Aquilo que ela deu ao filme foi qualquer coisa de valioso, de incrivelmente insubstituível. A sensação que tenho é de tristeza e de vazio. A Maria João marcou-me, Revelou ser um dos melhores profissionais com quem já trabalhei. A facilidade com que ela trabalhava era hipnotizante. Era incrível, o que eu imaginava para a personagem, a Maria João fazia.
A música para filme nem sempre é bem trabalhada no cinema português. No seu caso contou com a colaboração do Rodrigo Leão.
Eu ouvi uma música norueguesa num documentário, de uma senhora chamada Vidia Wesenlund. O processo da banda sonora começou aí. Comecei a ouvir álbuns desta artista. E houve uma música em particular que me chamou a atenção. Trata das saudades que os filhos têm dos pais que vão para o mar. Achei um tema interessante para abrir e fechar o filme.
Só depois é que apareceu o Rodrigo Leão?
Eu já sabia que a banda sonora ia ser feita por ele. Mostrei-lhe o tema com que o filme ia abrir e fechar e disse-lhe que queria que desse um cunho pessoal, tendo em consideração que a música já existia. E é nisso que o Rodrigo é genial. Porque fugiu muito do seu registo habitual. O que ele ofereceu, ele e o João Eleutério, foi aquilo que o filme necessitava. Uma música que não enchesse a cena, que fosse discreta, mas que complementasse e amplificasse emocionalmente o filme.
O filme passou por vários festivais, como foi a reação lá fora?
O filme esteve em doze festivais de cinema. O mais importante foi o de Talinn Black Nights, na Estónia. Como foi durante a pandemia foi-me impossível assistir, mas tive um contacto muito direto com o departamento de comunicação do festival. O filme foi tão bem recebido que foi convidado para participar num congresso relacionado com a justiça, para um debate com alunos de Direito e juízes da Estónia.
O filme também ganhou o prémio de melhor argumento...
No Egito, também ganhou o prémio de melhor argumento, e é uma cultura completamente diferente. No Japão, na Irlanda, na Alemanha, em França, é interessante como as culturas vivem o filme de maneira diferente. Mas o que é comum é acharem que o filme é bom por causa da ambiguidade. E isso quis manter religiosamente. Quis provocar uma discussão e depois o espetador é que escolhe quem é que está certo e quem está errado. Isso é que faz os filmes interessantes, quando o espetador participa na reflexão.
