Eugénio de Andrade: o "coração habitado" do poeta que escrevia "rente ao dizer"
Celebra-se esta quinta-feira o centenário do nascimento de Eugénio de Andrade, um poeta cuja obra resiste aos tempos. Ensaísta Arnaldo Saraiva destaca a "obra acessível a todos os leitores" e fala numa "inflação eugeniana".
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Poeta da "matéria solar", que escrevia com "o peso da sombra" no seu encalço e "a memória doutro rio" sempre junto a si, Eugénio de Andrade nasceu há cem anos.
Poucos escritores - e poetas ainda menos - se podem orgulhar de ter criado vínculos tão fortes com os leitores. Desde que, com apenas 25 anos, operou o seu primeiro milagre poético, "As mãos e os frutos", não mais a sua escrita passou despercebida. Aos seus pares, aos académicos e críticos, mas também a uma imensa mole de leitores, cativados por um imaginário poético fértil, marcado por uma busca do essencial que em nada atrapalhava a desejada profundidade.
"É uma obra acessível a todos os leitores, ao contrário, por exemplo, da de Herberto Helder, mais hermética", observa o ensaísta Arnaldo Saraiva, que, após ter presidido à fundação do poeta, entretanto extinta, ajudou a elaborar o programa comemorativo do centenário do seu nascimento.
A recente transferência de parte do espólio de Eugénio para a Casa dos Livros, um centro de estudos da responsabilidade da Faculdade de Letras do Porto que alberga também o acervo literário de Vasco Graça Moura, Manuel António Pina ou Herberto Helder (estes dois últimos digitalizados), e a plêiade de iniciativas previstas para os próximos meses fazem com que Arnaldo Saraiva acredite que "o natural apagamento" após a morte do poeta, em 2005, vai dar lugar "a uma inflação eugeniana".
Esse recrudescimento do interesse torna até possível "a descoberta de inéditos", mesmo que o poeta sempre tenha defendido que a sua obra essencial estava fixada na obra completa, já com várias edições.
"Há uns anos, ainda enquanto presidente da fundação, comprei em leilão dois cadernos de juventude de Eugénio, com vários esboços de poemas e anotações. Num autor como este, não há grandes revelações, mas é sempre possível trazer novos pontos de vista ou abordagens", conclui.
Nascer pela segunda vez
Nada na vida de Eugénio de Andrade parecia fadá-lo para um destino de exceção. Nascido numa aldeia remota na Beira Baixa, em 19 de janeiro de 1923, com pais de origens sociais muito distintas, descobriu a poesia logo no início da adolescência, na mesma altura em que aspirava à santidade. Este último desejo passou-lhe logo; a poesia, essa, ficou-lhe até ao fim.
Lisboa, Coimbra e Castelo Branco foram as cidades em que viveu entre os dez e os 27 anos, mas o apelo das paisagens da infância continuou a persegui-lo pelos anos fora.
A chegada ao Porto, em 1950, constituiu um segundo nascimento para o autor. À genuinidade das gentes acrescentou-se o fascínio pelas paisagens portuenses, da Ribeira à Foz, que lhe provocaria um encantamento traduzido em alguns dos seus memoráveis textos.
"O Porto é só uma certa maneira de me refugiar na tarde, forrar-me de silêncio e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de opor ao corpo espesso destes muros a insurreição do olhar", escreveu em 1979.
Possuidor de um olhar poético que ia muito além do simples ato da escrita, dedicou toda a vida profissional - cerca de 35 anos - a uma atividade nos antípodas da literatura: foi inspetor dos serviços médico-sociais. Uma opção com a qual, como confessaria, procurou manter "distante" do que nele " era mais vulnerável: a poesia e a vivência dela".
Os últimos anos foram marcados pelo afastamento crescente face ao meio social e até literário - raramente dava entrevistas ou aparecia em público -, mas em nada atrapalharam o reconhecimento alargado da sua obra. A atribuição do Prémio Camões, em 2001, ou a tradução dos seus poemas em mais de uma dezena de países foram os sinais mais visíveis de uma aclamação pública a que reagia sempre com notório desconforto. O poeta morreu em 13 de junho de 2005.