A exposição "Expurgar Papel", da artista Carla Filipe, explora complexidades do colonialismo europeu através de documentação do século XVII ao século XX, e é inaugurada na próxima sexta-feira, na Escola das Artes da Universidade Católica, no Porto.
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A mostra faz parte de um programa mais extenso, "Não foi Cabral: revendo silêncios e omissões", que inclui outras iniciativas, como concertos, conferências, performances artísticas, "onde o objetivo é questionar a maneira como a História é construída, e como podemos criar mecanismos de criticamente ler e interpretar a História", disse à agência Lusa o curador da exposição e corresponsável do ciclo, o investigador Nuno Crespo, diretor da Escola das Artes.
"Há um regime de inclusão e exclusão de factos na História, não por razões históricas, mas sim políticas, culturais e sociais", alerta o investigador. Daí a importância desses "mecanismos de criticamente ler e interpretar a História", que "podem ser as histórias relacionadas com algum indivíduo, a história relacionada com um facto qualquer que, por qualquer razão, política, social, económica ou cultural, não ficou escrita na narrativa histórica mais ortodoxa", reforçou Nuno Crespo.
Na prática, trata-se de perceber como "a História do vencedor deve ser complementada criticamente com a História dos vencidos."
A exposição de Carla Filipe surge na sequência da série "Mastigar papel mastigado, o desejo de compreender o velho continente para cuspir a sua história", iniciada pela artista em 2014 durante a sua residência artística em Antuérpia, na Bélgica, e vai estar patente até 15 de março, na Sala de Exposições da Escola das Artes da Universidade Católica, no Porto.
O projeto "Não foi Cabral: revendo silêncios e omissões" da Universidade Católica Portuguesa (UCP) traduz-se num programa com curadoria da investigadora brasileira Lilia Schwarcz e de Nuno Crespo, em parceria com as universidades de S. Paulo, no Brasil, e de Princeton, nos Estados Unidos.
O convite para a participação no programa que tem início na próxima sexta-feira foi estendido a artistas "cujas práticas vêm de muitas disciplinas, desde a pintura à performance, à música", para "contarem outras histórias".
Muitas dessas histórias "são biografias", prossegue Nuno Crespo, à Lusa, dando como exemplo biografias "de sujeitos negros que não constam na história ortodoxa". "E começámos a perceber como a História com 'H' grande está plena de algumas omissões e alguns silêncios que é importante resgatar e anular, não propondo nós uma reescrita da História, mas uma abordagem crítica".
O colonialismo europeu e as suas ambições
O trabalho da exposição de Carla Filipe, com cerca de 60 desenhos, foi iniciado em 2014. A artista "pega em documentação da História europeia, documentação muito variada, desde fotografias a recortes de jornais, de alguns acontecimentos históricos desde o século XVII até ao século XX". São documentos que a artista "reinterpreta integrando-os em desenhos de grandes dimensões, onde cola essas imagens."
"O que une toda esta documentação é uma proposta de entendimento do que foi o projeto do colonialismo europeu e as suas ambições de expansão", explica Nuno Crespo, acrescentando que a documentação utilizada foi adquirida em alfarrabistas e mercados de venda de objetos em segunda mão.
Segundo o curador, esta é "uma maneira de criar dispositivos para que nós percebamos, como escreveu o [filósofo Friedrich] Nietzsche, que 'não há factos só há interpretações', e aquilo que nós tomamos como certo, a 'verdade histórica', é só uma parte da narrativa, pois essa narrativa histórica precisa de ser abordada e completada criticamente, porque há um regime de inclusão e exclusão de factos na História, não por razões históricas, mas sim políticas, culturais e sociais."
"Tentamos perceber como é que essa História, que é sempre a História do vencedor, deve ser complementada, criticamente, com a História dos vencidos. A História é normalmente contada por quem vence a batalha, invadiu o território, de quem oprime ou domina o território, e nunca pensamos como se pode contar a História a partir do ponto de vista da vítima que foi submetida a um poder que invadiu", salientou.
Esta mostra e o projeto do qual faz parte pretendem refletir sobre "a ligação da Europa ao projeto colonial e à maneira como tendencialmente, interpretamos esse projeto do expansionismo português e europeu, como uma coisa positiva, esquecendo integrar nessa narrativa histórica a maneira como as populações onde chegámos, a partir desses projeto expansionista, o que elas sofreram com a nossa chegada lá".
A inauguração da exposição "Expurgar Papel" é antecedida de uma conferência da investigadora da Universidade de S. Paulo Lilia Schwarcz sobre "Imagens da branquitude: a presença da ausência".
Referindo-se à exposição, Nuno Crespo disse que "tem muito a ver com a maneira como a artista parte desta anáfora, do mastigar e deitar fora, como algo que tentamos engolir e não conseguimos, e ele sai-nos pela boca fora, como uma maneira de recusar a História oficial do colonialismo europeu."
Carla Filipe usa a colagem, em que todos os elementos usados são frágeis, e onde tudo é informação, desde os vários tipos de papéis usados, como jornais, notas ou papel de fantasia. E cabelo que relaciona o trabalho com o corpo, que também é um "arquivo", fazendo ligação ao próprio título "mastigar" e "cuspir".
No tocante ao uso do cabelo, Nuno Crespo disse tratar-se de "uma metáfora que recusa a História oficial do colonialismo europeu, mas também a maneira como Carla Filipe entende como os artistas abordam criticamente esta História, não a partir de um ponto de vista racional, académico, mas a partir do corpo e sempre essa reação que o corpo tem a um determinado facto ou a uma determinada situação."
O investigador da UCP realçou que "todos estes desenhos surgem de um desejo da artista compreender a História do continente, através do gesto artístico, que não é igual à compreensão de um historiador, e como esta ideia do cuspir, do expurgar o papel, este papel, o que sai do corpo do artista, essa compreensão é transformada em obra de arte."
O programa "Não foi Cabral: revendo silêncios e omissões" decorrerá até 24 de abril, mobilizando artistas como Pedro Barateiro, Francisco Vidal, Dalton Paula e Ayrson Heráclito, o ativista dos diretos dos povos indígenas Denilson Baniwa, e os cineastas Margarida Cardoso, João Salaviza e Renée Messora.