Já está nos cinemas "As Fado Bicha", documentário de Justine Lemahieu sobre o grupo.
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As Fado Bicha é um duo de artistas, composto por Lila Fadista e João Caçador, cuja formação data de 2017. Agora, é também o nome de um documentário de Justine Lemahieu, realizadora francesa há muito radicada entre nós, e que os acompanhou com a sua câmara ao longo de vários anos. O filme já está em exibição em salas de todo o país e estivemos a conversar com os músicos e ativistas queer.
Lembram-se da primeira vez que se sentiram tocados pelo fado e perceberam que era qualquer coisa para vocês?
Lila Fadista (LF) – A minha família nunca foi consumidora de fado. Em criança, achava uma seca. Muito datado, muito antigo, uma coisa de velhos. Mas na adolescência começou a fazer sentido para mim, de forma emocional. O primeiro fado que me agarrou foi o “Estranha Forma de Vida” e logo pela voz da Amália. A partir daí comecei a ouvir fado, sempre sozinha, no quarto. O fado deu-me um certo consolo.
João Caçador (JC) – Comigo passou também por uma experiência de solidão. Não era uma coisa que partilhasse com outras pessoas. Lembro-me de estar na praia a ouvir fado e a minha irmã ficar surpreendida. Era um lugar onde me via reconhecido. A poesia foi a minha porta de entrada para o fado. Encontrei no fado uma carga e uma vivência poética que não encontrei na pop ou na música que era ouvida à minha volta.
Como é que se conheceram?
JC – Conheci no Bairro Alto uma pessoa que ia fazer drag pela primeira vez, uma semana depois. Quando me convidou fui ver um vídeo que tinha acontecido na semana anterior com a Lila a fazer pela primeira ou segunda vez uma sessão de Fado Bicha. Eu já tocava em casas de fado e achei aquilo muito impactante. Na semana a seguir, estava lá a Lila e pedi para nos apresentarem.
Para além da componente musical, foi o lado de transgressão de uma certa imagem de marialvismo que vos fez também orientar para o fado?
LF – A nossa aproximação ao fado tem uma raiz muito emocional e muito poética. Nem sequer se fez nos meios onde o fado acontecia ao vivo. Fez-se porque nós ouvíamos em casa. Quando comecei o Fado Bicha foi menos como estratégia política ou pôr o dedo na ferida, mas mais como experiência pessoal. Eu quero expressar-me desta forma. Isso é que é absolutamente político. Não vou permitir que a forma como eu me expresso seja ditada de fora, vou criar a minha própria forma de expressão.
O próprio nome Fado Bicha é mais uma forma de expressão ou também tem um lado de provocação?
LF – Tem ambas as coisas. Sabemos quão forte é juntar essas duas palavras. O fado é uma palavra com um peso enorme na cultura portuguesa, há a ideia cristalizada de um fado tradicional, que é assim há duzentos anos e nunca mudou, o que é uma treta. O fado já passou por muitas mutações. Mas há muito essa ideia fixada pelo Estado Novo.
E Bicha é uma palavra suja, que assinala dissidência, e uma forma de violência social, que foi usada contra mim durante muitos anos na infância e na adolescência.
JC – Parte da transgressão vem do facto de que o fado não contemplou, nenhuma identidade que não fosse a heterossexual. Por isso é que é tão subversivo juntar uma identidade que supostamente não faz parte, e não fez parte historicamente, da história do fado. Obviamente que as pessoas LGBT existem no fado e sempre existiram. Durante mais de 200 anos desconstruir o género na forma como nos apresentamos, como cantamos, como tocamos, era uma regra tão tácita que ninguém ousava transgredir.
Quais foram as principais dificuldades para se imporem no meio?
JC – Nós nunca nos integrámos no meio do fado. No início houve muito ódio nas redes sociais. Mas dissemos desde o início que não íamos procurar a validação do meio do fado, porque isso interferia diretamente na proposta que apresentávamos. A proposta vem de fora, não fazia sentido dialogar, achámos que essa troca não ia ser produtiva. As maiores dificuldades prendem-se mais com lógicas mais gerais de qualquer arte queer.
Como é que a Justine os convenceu a acompanhá-los durante tanto tempo?
JC – Ao princípio a Lila estava mais reticente. Tínhamos só um ou dois anos e era estranho fazer logo um documentário sobre nós. Mas eu achei mais excitante, porque achei que pudesse ser um objeto artístico que ficasse e que durasse para sempre. Até para nós nos revermos e termos alguma coisa gravada desde o início do projeto.
Até que ponto o vosso visual em palco é importante para a vossa expressão?
João – Para mim foi muito importante. Houve uma troca entre a pessoa do fado e a pessoa da vida quotidiana. Uma desafia a outra. O lado artístico foi desafiando o quotidiano. A arte, quando tem esse papel, torna-se muito potente.
Como é que está a carreira?
JC – A nossa vontade é continuar a criar. A arte ajuda-nos a viver, a sobreviver, a criar um sentido para a nossa vida. Os Fado Bicha foi assim que foi criado no início. Depois ganhou outras camadas de responsabilidade social, para as pessoas que nos ouviam, daquilo que dizíamos, como nos posicionávamos. A utopia do que nos faz caminhar é ajudar-nos a viver uma vida melhor e a criar um lugar melhor para vivermos.
LF – Nós percebemos como determinadas dinâmicas se fortalecem e determinadas violências se institucionalizam. Temos medo em relação ao futuro. Sentimos progressivamente mais dificuldade em conseguir aceder a espaços. A liberdade é uma prática diária, que tem de ser defendida pela sociedade civil, mas também pelos governos. Se a cultura não for entendida enquanto motor e criação de liberdade fica refém da indústria e do capital. Olhamos para o futuro a preparar as armas.