“Falar das coisas faz parte do processo de pacificação”, afirma realizador de "O americano"
No início da década de 1980, Faustino Cavaco e o seu bando aterrorizou o Algarve e protagonizaria de seguida uma sangrenta fuga da prisão. Uma história que os portugueses acompanharam com atenção pelos jornais e pela televisão e que é reconstituída agora em formato de série de televisão.
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“O Americano” com realização de Ivo M. Ferreira, são oito episódios do melhor que se viu por cá e que em nada fica atrás das séries que vemos de outras origens. No rescaldo do primeiro episódio e no dia em que vai para o ar o segundo, estivemos a conversar com o realizador, de que se conhecem bem filmes como “Águas Mil”, “Cartas de Guerra” ou “Hotel Império” e a série de televisão “Sul”.
Quando é que pensou que a história do Faustino Cavaco dava uma série de televisão?
De vez em quando vamos tendo ideias para filmes, outras cruzam-se connosco. Também procuramos nas nossas gavetas internas. Neste caso tinha uma relação, quando era miúdo, com a história da fuga. Fui de férias com os meus avós numa altura em que estavam os seis fugitivos a monte na serra algarvia e tinham assaltado o carro de uma família espanhola. Nós estávamos à mercê do mesmo tipo de riscos.
Tiveram algum contacto com o bando?
Não aconteceu nada. Na altura, era um Portugal a querer entrar na CEE mas ainda com muitos buracos nas estradas. Eles andaram a monte três meses, depois foram sendo apanhados. Lembro-me perfeitamente das histórias que iam sendo reveladas. Foi uma coisa que me chamou muito a atenção na altura, sem saber bem porquê. Na altura também se começou a falar dos maus tratos a que eram sujeitos os presos. Lembro-me perfeitamente da história dos irmãos Cavaco, que nem sequer eram irmãos.
Quando é que começou então a ficcionalizar esta história?
Muitos anos mais tarde estou a fazer um trabalho sobre o mesmo período romântico dos anos 80, neste caso uma organização armada revolucionária e fui-me cruzando de novo com esta história, até porque eles se cruzaram na prisão.
Trabalhou em conjunto com o escritor Bruno Vieira Amaral.
Tínhamos combinado um encontro, eu queria muito trabalhar com ele, precisamente pelo retrato que faz dos anos 80. Quando eramos jovens chegámos a cruzar-nos na António Arroio. Estava muito entusiasmado com o que ele escrevia e como ele retratava o país, não de elites mas o país suburbano, o que me interessava imenso. Ele tinha escrito sobre o Faustino e voltei a cruzar-me com a história da fuga da prisão. Percebi que ele tinha imenso interesse no tema e saímos dali com a ideia de fazer qualquer coisa à volta disto.
40 anos depois daquela fuga houve outra, que foi notícia durante alguns dias mas depois caiu no esquecimento. Tornámo-nos um povo indiferente?
Sinto que por vezes temos tendência a escamotear os acontecimentos. Somos um povo que não lê jornais. Passámos a depender totalmente das televisões. É muito assustador o sensacionalismo que se dá às coisas, sem profundidade nenhuma. Toda a gente sabe tudo, mas não percebe nada. Parece que estou aqui a fazer de Velho do Restelo mas é verdade. Esta coisa de estar a cada minuto a debitar o que se está a passar não me parece excecional. Esta toxicidade informativa dá origem a um certo vazio, porque nada invoca à reflexão.
Chegou a falar com algumas das pessoas envolvidas na história?
Com certeza, a começar pelo próprio Faustino Ainda há pouco falei com ele ao telefone. Mas não só, também com outras pessoas que tinham vivido a história. Sim, fizemos a investigação. Dediquei uma boa parte do meu tempo de escrita a falar com pessoas. Uma pessoa fundamental foi o Rogério Rodrigues. Ele tinha um fascínio pela personagem, contou-me porque compilou aquele livro, “Vida e Mortes de Faustino Cavaco”.
Como é que foram reagindo à ideia de transformar a história numa série?
Eu tenho tido várias experiências. Quando fiz o “Cartas de Guerra” disseram-me que ia ter ameaças de morte. Partimos sempre de coisas impossíveis. O cinema também pode limpar algumas feridas. O cinema não tem nada a ver com um certo tipo de jornalismo que anda sempre a atear fogos. Falámos com muitas pessoas, mesmo da Judiciária, que andaram atrás deles. Falar das coisas faz parte do processo de pacificação.
Como é que as pessoas no Algarve olham hoje para aqueles acontecimentos?
Há sempre memórias. Em Loulé uma senhora disse-me que a mãe estava num assalto, eles até foram muito simpáticos, levou um tiro na perna mas até foi sem querer, a bala fez ricochete. A mãe nem ficou zangada, percebeu perfeitamente. Há muitas histórias e haverá outras diferentes, sobretudo quando houve crimes de sangue, quando há mortes, com certeza. Os familiares das vítimas terão outros sentimentos, muito mais pesados.
A reconstituição histórica sempre o interessou, ao contrário de outros cineastas, que lhe fogem a sete pés.
Sou fascinado pela história e pela memória portuguesa. Há fases que me fascinam através de perceções que tive em miúdo. Questões políticas e sociais que me passaram à volta. Gosto muito de investigar e de escortinar um pouco essas primeiras sensações que tive. E não tenho interesse nenhum em olhar para a sociedade e criar uma espécie de verdade social. Gosto desse filtro que é um olhar para o mundo e não o mundo como ele supostamente é. Além de que acho mais atraente filmar um tabliê de um carro antigo ou uma camisola feita à mão por um pescador.
O elenco é fantástico, há atores que compões personagens que não vamos esquecer, mas escolheu para o Faustino um jovem quase desconhecido, o João Estima.
Conheci o Estima num casting para o “Projeto Global” e gostei muito dele. Precisava de uma figura elegante, alta. Há uns anos atrás, quando isto começou, a primeira ideia foi o Albano Jerónimo, finalmente era a oportunidade de trabalhar com ele, o que queria muito. Mas não podia pedir a um ator de 40 anos para fazer um miúdo de 20. E tive a oportunidade de ver uma cena que ele fez para um filme do Tiago Guedes
Como é que o transformou no Faustino?
Fiz só uma sessão de casting para perceber se ele estava disposto a procurar um tom muito específico, que saía do ultra naturalismo, um tom mais western. Queria que a personagem fosse misteriosa. Que não fizesse gestos que não querem dizer nada, uma coisa muito comum na representação que eu detesto. Depois foi um trabalho muito exigente para o João Estima, porque em 67 dias de rodagem só não rodou dois dias e não tinha experiência de filmar tanto nem com um arco de personagem tão grande.
Já há dados sobre as audiências do primeiro episódio?
Sei que na RTP estavam muito felizes com os resultados. E agora as pessoas veem cada vez mais em RTP Play e não em direto. O direto foi muito bom, parece que estamos no universo das 400 mil e está a subir bastante na RTP Play.
O que é que o espetador pode esperar dos próximos episódios?
Vamos ver uma história de amor, uma tragédia de morte e um Portugal já em grande parte desaparecido mas que ainda se vislumbra, que ainda se pode sentir e cheirar, para o bem e para o mal.