Filme dramático de 2022, disponível na Netflix, relata o êxodo forçado dos palestinianos aquando da criação do estado de Israel.
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Há filmes com histórias intemporais e há filmes que a História trata de fazer intemporais. "Farha", poderoso drama palestiniano que a Netflix voltou a destacar depois de o ter disponibilizado no final de 2022, encaixa no segundo grupo. Retrata a experiência de vida (podemos chamar-lhe isso?) de uma jovem adolescente durante a Nakba - a "catástrofe" (em árabe) do povo palestiniano que designa o êxodo involuntário de largas centenas de milhares de pessoas, que saíram à força das suas terras para fugirem à violência e perseguição que acompanharam a criação do Estado de Israel em 1948 - e que, tantas décadas depois, continua e se intensifica, como praga endémica.
Farha, 14 anos, vive numa pequena aldeia da Palestina onde as meninas com a mesma idade já estão casadas ou prometidas para casamento. Em contramão face às tradições de género que ali imperam e desafiando as restrições à escolaridade num lugar onde os livros são para os rapazes, Farha, filha do líder da aldeia, determinada e corajosa, com uma cabecinha inundada de sonhos urbanos, quer muito juntar-se à melhor amiga, Farida, na cidade e aí continuar a estudar. Está quase a fazê-lo, quando a aldeia de que se queria despedir é brutalmente ameaçada pelo perigo iminente de uma invasão armada estrangeira.
Aterrorizado pela segurança da filha, que recusou ir embora com a família da amiga, teimando em ficar ao lado do pai, Abu tranca-a num pequeno espaço de armazenamento de alimentos perto de casa. Promete voltar, mas não volta. E é nesse buraco preto e solitário, onde a única conexão com o mundo exterior é um pequeno buraco na parede e algumas fendas na porta de madeira a deixarem entrar a luz, que se desenrola a trama, por um período de tempo indefinido, quase em silêncio. E sem falar, conta-se tanto.
O desejo de se entregar ao desconhecido com a mesma ânsia de aprender matemática, geografia e inglês fica para trás. O mundo de Farha é agora um abrigo de comida, onde pouco há a fazer senão esperar. Ela vasculha as reservas, recolhe água da chuva, faz xixi num canto que cobre com sacos de grãos e espia a vida lá fora pelo olho mágico na parede - a janela improvisada de onde, certo dia, assiste a uma barbárie sem tamanho dizível, o fuzilamento de uma família inteira às mãos armadas de soldados.
Inspirada por factos reais, a primeira longa-metragem da realizadora Darin J. Sallam, jordana e com raízes palestinianas, lembra outros dramas de inocentes perseguidos e mortos em conflitos e ocupações que se substituem uns aos outros no tempo e no espaço. Farha podia ser Anne Frank. E podia ser tantas meninas e meninos sem nome que, quase 80 anos depois da Nakba, são silenciados por holocaustos diários.