
"Na presença da ausência", de Mahmoud Darwich, é um manual de despedida e um farol de lucidez e beleza
FOTO: DR
"Na presença da ausência", lançado dois anos antes de morte do poeta palestiniano, é o testamento vital de Mahmoud Darwich. É um livro monumental.
Mahmoud Darwich (1941-2008) não nos deu um livro de memórias - deu-nos um testamento. No cume da maturidade artística e na sombra premonitória da morte, o poeta palestiniano executou a mais ousada das viagens: despedir-se de si próprio. Dois anos depois de editar "Na presença da ausência", morreu de coração lacerado. Tinha 67 anos.
Híbrido de autobiografia, poema em prosa e meditação filosófica, a estrutura é prodigiosa na sua simplicidade: Darwich divide-se em dois. De um lado, o "eu", o jovem que foge da sua aldeia, o que carrega a identidade como uma ferida, é o amante, é o exilado, é o prisioneiro. Do outro, o "tu" que observa e interpela, o poeta maduro, o lúcido que se examina como um objeto estético e histórico.
Desassombrado e íntimo, esse diálogo não é um mero exercício de estilo; é uma investigação da grande questão darwichiana: como narrar uma vida que é, desde o início, a história de uma ausência? Ausência de um lugar, de um regresso, a ausência de tudo a que se possa chamar normalidade.
A prosa é límpida, breve e densa. Escrita com bisturi, carregada de lirismo e contenção, explode em significação.
Darwich não descreve a paisagem da Palestina; invoca-a como um paraíso perdido, como um cheiro ou um sabor definidor do paladar da alma.
Não fala da Nakba como um evento político, mas como uma rutura cósmica na sua pele, na sua infância.
E a política nunca é panfletária; é coronária, é respirável, é o ar que se tira a um refugiado.
"Na presença da ausência" é, ainda, uma reflexão sobre a linguagem como trincheira da pátria. Darwich examina o poder e a insuficiência da linguagem, a sua capacidade de criar mundos e a sua impotência perante a realidade da bruta ocupação israelita. Quando a geografia é roubada, a palavra torna-se o território da memória.
Manual sobre a arte de morrer, "Na presença da ausência", que desmonta o mito do herói nacional para reencontrar o homem e os seus cansaços, é, e ainda, um movimento de interiorização com uma força tal que a sua mensagem adquire o poder da universalidade comovente. E assim, a sua ausência é uma presença indesmentível como o ferro.
"Tu e eu estamos ausentes. Tu e eu estamos presentes e ausentes. Assim, pois, quais das mercês do vosso Senhor desagradeceis?".
Este não é só um livro vital da literatura palestiniana; é uma obra-prima da literatura mundial, um farol de beleza sobre a nossa condição coletiva nas trevas.
A epígrafe supracitada em título é a arma de Mahmoud Darwich: "Faz-me nascer de um grão de trigo, não de uma ferida".
"Na presença da ausência"
Mahmoud Darwich
Flâneur, 2025 [reedição]
