Entre o real e o sobrenatural, Morgado e Leoni dão uma explicação para a origem dos heterónimos e o sentimento de culpa do poeta Fernando Pessoa.
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Sabemos tanto e ao mesmo tão pouco sobre Fernando Pessoa, o escritor, o poeta, o homem, a face visível de tantos heterónimos, que todos os delírios e suspeições são legítimos.
Para tentar responder à dupla questão por que criou Pessoa os seus heterónimos e de onde lhe vinha o pesado sentimento de culpabilidade pelos seus atos, o argumentista português André Morgado e o desenhador brasileiro Alexandre Leoni, com muita imaginação e de modo desafiador, decidiram narrar "A vida oculta de Fernando Pessoa". Após edições de pequena tiragem dos dois lados do Atlântico, dez anos depois da publicação original, o volume está agora nas livrarias.
Não é a primeira vez que Pessoa é personagem de BD, mas, possivelmente, nunca foi abordado de forma tão original - e original é o adjetivo que melhor a define - e, ao mesmo tempo, tão estimulante na forma como abre novas perspetivas sobre o autor.
Partindo da morte do pai, descobrimos que todos os homens da família pertencem à Sociedade Secreta de Extermínio do Mal e, atuando nas sombras, estão encarregados de eliminar pessoas transformadas em mortos-vivos.
Se esta temática fantástica podia facilmente ter feito derrapar o relato e retirado todo o interesse à leitura, a verdade é que Morgado foi capaz de desenvolver uma história equilibrada, e até de lhe transmitir sentido, ao mesmo tempo que prestava uma bela homenagem a Pessoa e à sua obra.
Boa parte dos diálogos incorporam trechos de textos e poemas pessoanos, assim como dos seus heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Heterónimos estes cuja participação nesta banda desenhada - sem adiantar mais do que o devido para não retirar prazer à leitura - vai bem além do que seria expectável, proporcionando uma curiosa explicação para a sua existência na bibliografia do escritor.
Desta forma, "A vida oculta de Fernando Pessoa" é uma sombria narrativa de aventuras, uma exposição inédita da vida do poeta, sem a extirpar da solidão e da dúvida constante que a caracterizaram, proporcionando uma inesperada análise da sua obra e das suas motivações, ao mesmo tempo que consegue equilibrar a imensa complexidade do ser que a inspirou com a linearidade da história.

