Uma abordagem tropical de Tchekov ou uma peça a criticar o capitalismo para ver deitado numa espreguiçadeira, estas são duas das propostas da celebração do teatro em Guimarães
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A 35.ª edição dos Festivais Gil Vicente convida a um novo olhar sobre a história, a partir de um ponto de vista africano com "Cosmos", de Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema - o trio de vencedoras da Bolsa Amélia Rey Colaço, em 2021. O apelo a um olhar descentrado prolonga-se em "As três irmãs", uma criação da atriz, cantora e performer trans Tita Maravilha, vencedora da última edição da mesma bolsa. Há seis espetáculos para ver, nos dois palcos do Centro Cultural Vila Flor (CCVF) e na Black Box do Centro Internacional de Artes José de Guimarães (CIAGJ), entre 1 e 10 de junho. Numa edição em que vários dos trabalhos que sobem ao palco são financiados por bolsas d"A Oficina, o vereador da Cultura, Paulo Lopes Silva, assegura que as verbas para estes apoios vão-se manter.
Rui Torrinha afirma que "o festival quer manter a característica vicentina de um olhar crítico sobre a sociedade." Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema abrem o festival com "Cosmos", uma obra em que dão continuidade ao trabalho que iniciaram com "Aurora Negra". Se na peça anterior o foco era na invisibilidade dos corpos negros, agora pretendem fazer um resgate da mitologia africana e uma releitura de alguns eventos históricos.
Tita Maravilha prolonga esta sugestão de olhares não europeus, pegando no clássico de Anton Tchekov "Três irmãs", para construir uma narrativa onde os conceitos basilares da sociedade normativa são revisitados a partir das subjetividades das irmãs: Diogo, Macha e Irina.
Num recorte mais descontraído, um cruzamento de teatro, performance, instalação e concerto ao vivo, "All you can eat", Raimundo Cosme e Cecília Henriques fazem uma análise mordaz sobre o capitalismo e o excesso de consumo. Assiste-se à peça deitado numa espreguiçadeira e este é o mote para a reflexão sobre a exigência do "direito ao descanso e ao aborrecimento", quando "são cada vez mais os estímulos que desvirtuam esse "não-fazer-nada", criando a sensação de que esse tempo deve ser ocupado sob pena de não ser aproveitado."
Conversar com os autores
Numa dinâmica que foi inaugurada na edição anterior do festival, com Sara Barros Leitão, o diretor convidado do Teatro Oficina em exercício, Mikael Oliveira, foi convidado para curar as atividades paralelas. "Foi um programa pensado para alimentar a discussão à volta das obras", reconhece. É assim que, na sexta-feira, dia 2, depois da apresentação de "Três irmãs", há uma conversa com Tita Maravilha. Este formato volta a repetir-se na sexta-feira, dia 9, com uma conversa com a Associação Silent Party, depois da apresentação de "Um quarto só para si" e novamente, na noite seguinte, para trocar ideias com Luís Mestre, após o espetáculo "Noite de verão".
Nas tardes dos sábados, dias 3 e 10, às 17 horas, no pátio interior do CCVF, Mikael Oliveira propõe um debate sobre "os fundamentos do gesto artístico", primeiro, e a propósito de "como apoiar a sua radicalidade", na segunda sessão.
Modelo de financiamento provisório
Numa edição em que sobem à cena peças apoiadas por duas bolsas das quais faz parte A Oficina, o vereador da Cultura da Câmara Municipal de Guimarães, Paulo Lopes Silva, voltou a por em evidência o problema do atual modelo de financiamento através do Programa de Apoio à Programação da Rede de Teatros Cineteatros Portugueses, "que não leva em conta uma estrutura como a nossa que, além de programar, tem uma forte componente de apoio à criação e gere não só um centro cultural, mas também um centro de arte moderna e a Casa da Memória." Paulo Lopes Silva admite que a questão "tem tido eco junto da Direção Geral das Artes e do Ministério da Cultura." O vereador esclareceu que, este ano foi possível vencer o limite de 200 mil euros de financiamento, "com recurso a um apoio extraordinário de 250 mil euros que colocou o apoio total do Estado central à Oficina em 450 mil euros." Para o vereador vimaranense o objetivo passa agora por encontrar uma solução definitiva, "não só para A Oficina, mas para outras estruturas que têm problemas semelhantes."
Os bilhetes para os Festivais Gil Vicente estão à venda nos balcões do CCVF, CIAGJ, Casa da Memória, na Loja Oficina, nas lojas Fnac, Worten, El Corte Inglês e na bilheteira online Bol e custam 7,5 por espetáculo. Há descontos de 20% para quem adquirir ingressos para duas peças, 30% para três e 40% para quatro. Os profissionais das artes e dos espetáculos, alunos de artes performativas e das oficinas d"A Oficina, membros do Gangue de Guimarães e os membros dos grupos de teatro amador vimaranenses, têm 50% de desconto.
Nesse caminho, dentro desta edição, iremos reencontrar referenciais clássicos que servirão de base para novas estórias de vida, que entretanto se desenham sem pedir licença neste tempo de grande transformação. Tita Maravilha apresenta-nos uma abordagem tropical ao universo de Tchékhov, a partir de "As Três Irmãs". E nada mais ficará na mesma.
Nesse sentido especulativo entre o que somos, sentimos e projetamos, não poderemos escapar à viagem delirante da Plataforma285, envolta pela mercantilização e o capitalismo dos afetos. "all you can eat" é um espetáculo transdisciplinar que cruza teatro, performance, instalação, dança e concerto ao vivo, que busca reclamar o direito ao ócio, enquanto se descobre cada vez mais preso, cada vez mais produtivo, cada vez mais rentabilizado.
Mas esta edição também é sobre ser-se espectador. Espectador de teatro. Espectador de cinema. E de que forma ser-se espectador é um estado de assimilação ou um estado condicionado de desenvolvimento. Sobre essa matéria, interpretará Teresa Coutinho o seu "Solo", acerca da condição feminista que a caracteriza e a move.
Mas o teatro, nesta edição, também abraçará exercícios experimentais e poéticos que propõem um olhar influenciado pela arquitetura do lugar: como fazer um esboço de um edifício que permita a emancipação permanente dos corpos que o habitam, enquanto lhes devolve a possibilidade de uma existência em conjunto? A interrogação é-nos colocada pelos silentparty. A descoberta de outras possibilidades serão assim ensaiadas.
E no fecho desta edição, capturamos o humanismo e o existencialismo como fonte inesgotável para a formação de um campo sensível, em "Noite de Verão" de Luís Mestre inserida na Tetralogia das Estações: dois millenials: um homem e uma mulher que atravessaram duas crises assimétricas em dez anos; a financeira e a pandémica. Não se conhecem, estão num verão quente e querem sentir uma leveza acolhedora, algo que perderam precocemente nas suas curtas vidas.
É preciso estremecer a valer para sentirmos mais fundo. É essa a proposta para esta edição dos Festivais Gil Vicente