É uma tendência que se tem vindo a verificar na Berlinale, e não só, e que se esperava mudar com a nova direção do festival, a cargo da britânica Tricia Tuttle.
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Mas o pior cenário tem-se confirmado nos primeiros dias do festival: parece que os filmes da competição são escolhidos como os piores do ano e o que de melhor se vê no festival, e existem bons filmes, felizmente, continua a ser empurrado para as seções paralelas.
Algo que terá muito a ver com as equipas de seleção dos grandes festivais de cinema, como o estado do cinema, ele próprio e com o estado do mundo. Veja-se, por exemplo, “Ari”, da francesa Lénor Serraille.
Depois do bem interessante – mas não mais do que isso – “O Irmão Mais Novo”, chega a Berlim e logo à competição pelo Urso de Ouro com um filme que repete o que de mais insuportável tem o lado pior do cinema francês: pretensioso na sua temática, palavroso na sua construção, completamente ausente de ideias na realização, com a câmara a limitar-se a seguir as personagens, qual delas mais desagradável do que a outra. Ari, a personagem central, é um jovem que era professor primário mas decide não fazer nada da vida, andando por qui e por ali. Ou talvez não, num daqueles finais em que neste caso a realizadora gosta de se mostrar mais inteligente que o espetador. Absolutamente desastroso!
Melhor, mas sem convencer ninguém aqui pela Berlinale, é o último filme do mexicano Michel Franco, trabalhando de novo com Jessica Chastain. “Dreams” começa bem, acaba ainda melhor, na sua crueldade, mas pelo meio perde-se, sem percebermos muito bem memso em que cidade estamos. E, de novo, não há nenhuma personagem que se aproveite na sua humanidade. Estamos a falar da filha de um bilionário misantropo, que se apaixona por um dançarino mexicano, com quem vai praticando jogos sexuais e obriga a entrar e sair dos Estados Unidos sem papéis. Pelo menos, o filme tem direito à melhor réplica do festival, até agora, quando o pai da personagem interpretada por Jessica Chastain, em desacordo com a relação que ela vai tendo com o bailarino, lhe diz: “nós gostamos de ajudar os mexicanos, mas há um limite”!
Como afirmávamos, felizmente que a falta de qualidade da competição, pelo menos nesta fase inicial do festival, tem sido compensada por algumas pérolas que podemos ver nas secções paralelas, como o Panorama. É o caso de “A Melhor Mãe do Mundo”, o novo filme de Anna Muylaert, mostrando como o cinema do Brasil não se resume ao fenómeno de “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles.
Muylaert, que também não é uma novata, e de quem já vimos outro ensaio sobre a maternidade, “Mãe Só Há Uma”, pega agora numa não profissional, a espantosa Shirley Cruz, para falar da violência sobre as mulheres, cujas estatísticas são infelizmente catastróficas no Brasil.
No filme, a protagonista sai de casa de um homem com quem vive, violento e alcoólico, levando consigo as duas crianças que tem de um relacionamento anterior,
tentando sobreviver, entre a realidade das ruas, uma parente afastada que acaba por não se colocar do lado dela e uma associação onde finalmente encontra uma possibilidade de refazer a sua vida. Dito assim parece um filme recheado de lugares-comuns, mas que a realizadora sabe evitar, pela inteligência e subtileza do argumento e pela forte personalidade da sua protagonista. Realce ainda para uma pequena presença de uma figura lendária da música brasileira, Seu Jorge, num papel pouco simpático, mas a que transmite toda a sua dimensão.
Também do lado positivo da Berlinale, “Peter Hujar’s Day”, de Ira Sachs, mostra como uma ideia é o melhor princípio para se conseguir algo de novo e que possa motivar o espetador. Peter Hujar, famoso fotógrafo norte-americano, que a SIDA derrotou com pouco mais de 50 anos, foi entrevistado pela escritora Linda Rosenkrantz, em 1974, que lhe perguntou o que tinha feito no dia anterior.
A gravação perdeu-se, mas uma transcrição foi descoberta recentemente. A própria escritora, ainda viva e com 91 anos, lançou um pequeno livro de pouco mais de 30 páginas, que Ira Sachs descobriu e adaptou para um pequeno filme, na sua escala, mas maravilhoso no que nos oferece, com Ben Whishaw e Rebecca Hall a recriarem esse dia num apartamento de Nova Iorque. Um regresso a um tempo que não volta mais.
Ira Sachs, que vive há mais de quarenta anos em Nova Iorque, já realizou um filme em Portugal, mais precisamente em Sintra. Tratou-se de “Frankie”, com Isabelle Huppert na protagonista. Reencontrando o realizador, mandou através de nós um abraçoa dois amigos que deixou entre nós, o produtor Luís Urbano e o diretor de fotografia Rui Poças. Felizmente que ainda há filmes assim.