Uma mostra de mais de uma dezena de filmes do realizador sublinha a sua importância na história do cinema americano.
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Na vasta programação do Festival Lumière, que se realiza em Lyon, com base no Instituto que leva o nome dos dois irmãos que nesta cidade rodaram o primeiro filme da história do cinema, não pode deixar de se notar a retrospetiva dedicada a Sidney Lumet.
Podia pensar-se que a noção de "clássico" se esgotaria em filmes mais antigos, sobretudo do cinema mudo. E há várias obras-primas dessa época a passarem nas mais variadas salas da cidade, sempre cheias de público e filas à porta, à espera de algum lugar ainda livre. Mas ao olhar para o programa do festival, percebe-se bem que mesmo filmes das décadas de 1960 e 1970 podem já ser considerados como "clássicos".
Aliás, o dealbar de um novo século e a revolução do digital veio criar uma linha divisória clássica e hoje em dia, todos os filmes produzidos "ainda" em película, em "filme", precisamente, podem perfeitamente ter essa etiqueta de clássicos, surgindo-nos agora, cada vez mais, em cópias novas, restauradas e digitalizadas, com base nos materiais originais, sobretudo, quando possível, nos negativos de imagem e de som da época, guardados religiosamente pelas cinematecas de todo o mundo.
É nesse sentido, mas também pela importância vital da sua obra, que ganha um particular relevo a retrospetiva dedicada a Sidney Lumet (1924-2011), um cineasta nascido em Filadélfia mas cuja obra, que se expande por mais de meio século, quatro dezenas de filmes e inúmeros trabalhos para a televisão, se centra em grande parte na cidade de Nova Iorque que adotou.
De toda a retrospetiva, destaque para "The Pawnbroker", de 1964, passado precisamente na cidade que nunca dorme e que, salvo qualquer erro cometido à distância de uma mais precisa verificação, não estrearia à época em Portugal, provavelmente impedido pela censura. Aliás, o filme teve também problemas para obter a licença de exibição nos próprios Estados Unidos, por ser o primeiro filme americano a conter uma sequência de nu frontal feminino.
Agora com segurança, pelo menos dois outros filmes de Lumet não escapou às malhas da censura portuguesa, "The Hill", estreado apenas depois do 25 de Abril, com o título "A Colina", e "12 Angry Men", exibido na televisão como "Doze Homens em Fúria". Sidney Lumet um cineasta político? Também, seguramente.
Voltando a "The Pawnbroker", ou "O Agiota", título de uma eventual emissão televisiva posterior, o filme tem como personagem central um judeu nova-iorquino, traumatizado pela perseguição dos nazis e pela perda de toda a sua família. Vivendo praticamente na sua loja de penhores numa zona mais pobre e periférica da cidade, tem como empregado um jovem hispânico com um passado de marginalidade, que vai envolver-se num assalto à sua loja com um bando de negros que terminará de forma trágica...
O filme, um retrato da América da época, com um forte conteúdo político e social, sobretudo através do contacto do protagonista com tantos dos seus clientes, vive sobretudo dos exteriores, rodados de forma guerrilheira por uma produção independente que conseguiu, no entanto, chegar mesmo aos Óscar, com a nomeação para melhor ator do sempre intenso Rod Steiger, aqui quase irreconhecível na personagem de Sol Nazerman.
Se este filme constitui, para nós, uma das revelações da mostra alargada de filmes de Sidney Lumet, é evidente que os seus títulos mais mediáticos são os que fez com o icónico Al Pacino, como "Serpico", cuja imagem figura no cartaz da retrospetiva, ou "Dia de Cão". Um dos realizadores que fez a escola da época de ouro da televisão americana, como John Frankenheimer ou Robert Altman, Lumet, é para uma nova geração de cinéfilos ainda um cineasta desconhecido.
Pedindo emprestado o título de um dos seus filmes, a mostra de Lyon chama-lhe "um príncipe de Nova Iorque". É urgente revelar, rever, mostrar, todos estes filmes que a mostra ofereceu ao público da cidade e aos seus muitos visitantes estrangeiros. Não podemos desconsiderar títulos como "O Homem da Pele de Serpente", "O Dossier Anderson", "Um Crime no Expresso do Oriente", na versão de Albert Finney na pele de Poirot, ou "Network - Escândalo na TV", como clássicos do cinema. Mas de uma perene modernidade. Se há um cineasta a redescobrir entre nós com urgência, ele chama-se Sidney Lumet.