Já está nas salas "As Oito Montanhas", um filme belo e espiritual sobre a amizade. Os realizadores, o casal belga Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch, estiveram a conversa com o "Jornal de Notícias".
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O casal de realizadores belgas constituído por Felix van Groeningen, conhecido por "O Ciclo Interrompido" e Charlotte Vandermeersch, atriz que se estreia atrás das câmaras, adaptou o romance de Paolo Cognetti, "As Oito Montanhas" (editado em Portugal), oferecendo-nos uma magnífica experiência visual e sonora sobre a eternidade da amizade. Nas altas montanhas de Itália, dois amigos de infância que a vida separara reúnem-se de novo. O filme venceu o Prémio do Júri em Cannes e estreia agora nas nossas salas de cinema. Estivemos a falar com os realizadores.
Apaixonaram-se primeiro pelo local ou pela história?
Felix (F) - Apaixonámo-nos pelo livro e dissemos que sim ao projeto. E quisemos logo fazê-la em italiano, não em inglês, mudando a localização da história. Duas semanas depois estávamos em Itália para falar com o Paolo, que vive na montanha e nos mostrou os locais e as pessoas que o inspiraram para escrever o livro. Andámos à procura em várias montanhas, mas acabámos por filmar muito perto de onde ele vive.
Que efeito teve em vocês o contacto com estas paisagens?
Charlotte (C) - Para dizer a verdade estávamos a viver um momento desastroso na nossa relação e este filme ajudou-nos muito a superar essa crise. Estamos juntos há 15 anos, todos os casais passam momentos difíceis. Decidimos fazer esta adaptação juntos e chegou o confinamento. Era um momento difícil para toda a gente mas tínhamos esta lindíssima história sobre dois seres para contar. Sobre valores essenciais como amor, amizade, família. Aceitar as escolhas do outro, dar liberdade ao outro.
F - Achámos que o facto de sermos um casal, de sermos homem e mulher, de sermos pais, era benéfico para este filme. Achei que a Charlotte estava pronta e queria participar no processo criativo, nem sequer pensava na correalização.
C - Eu tinha essa ambição e senti que fazia sentido neste projeto.
Como é que sentiu na realização, com um projeto tão exigente?
C - Começou logo no processo de casting, na escolha de atores. Achei que era interessante saber exatamente o que eles estavam a sentir. Foi todo um processo em que pude realmente colocar a minha experiência. Ao serviço do projeto.
Podem falar um pouco da escolha do formato de imagem? Quando se faz um filme na natureza há a tendência para usar o ecrã largo, mas não o fazem e o filme mantém toda a sua beleza.
F - A nossa primeira tendência foi de usar o formato largo, é verdade. Mas o meu diretor de fotografia, com quem trabalho há mais de vinte anos, gosta como eu de pôr tudo em causa. E, de repente, durante a preparação do filme, fiz umas fotografais quadradas, das montanhas e das paisagens e tornou-se evidente que era mais interessante filmar assim. As montanhas são verticais, porque não ir em altura e não em largura?
O formato não é muito habitual, mesmo aos olhos dos espectadores.
F - Fizemos testes e achámos que era a melhor forma de meter o espetador dentro da imagem, ao invés de se refastelar na cadeira. Só usei o formato num filme feito na escola e detestei, porque queria fazer "cinema". Mas na realidade este formato deu-nos uma maior liberdade. O cinema pode ser o que nós quisermos.
As imagens são magníficas, mas imagina-se que tenha sido perigoso filmá-las.
C - Andámos por aquela zona com a nossa caravana uns meses antes das filmagens. Até para nos integrarmos naquelas comunidades e para aprender a falar italiano. Um dos nossos atores, o Luca Marinelli, também se mudou para lá uns meses antes. Fizemos caminhadas com o Paolo, que é um especialista em montanhas. Do ponto de vista logístico foi exigente, mas ainda bem que tínhamos dois pares de olhos e de ouvidos. Fizemos um grande trabalho de preparação.
Não houve questões climatéricas a condicionar as filmagens?
F - Aceitámos que iria ser assim e fomos muito flexíveis, na medida do possível. Quando não podíamos filmar no exterior filmávamos os interiores. A nossa equipa acreditava que era assim que tínhamos de fazer. Filmámos a três mil metros de altitude. Dormimos lá em cima, 25 pessoas todas juntas. No Nepal foram duas semanas, mas com uma equipa mais reduzida.
Fazer este filme não vos deu vontade de ir viver num local assim?
F - Falámos sobre isso. Toda a gente tem um dia esse desejo. Viver sem instagram, só de pão e queijo, e a água que corre na montanha. Mas nem sempre é possível. É preciso ser-se muito forte para viver nas montanhas. As montanhas são belas, mas são impiedosas. Se não se nasceu lá é difícil enfrentar a solidão.
As duas personagens centrais atravessam um caminho muito espiritual durante a história...
C - Há qualquer coisa em estar lá, nas montanhas. Imagino que no deserto também. São lugares muito puros, onde se está em contacto com os elementos. Há algo de meditativo em andar pelas montanhas. Os sons mudam, também o tentámos captar. É verdade que há algo de espiritual nessa experiência, embora cada pessoa o possa sentir de forma diferente. De certa forma é um filme épico, mas contado em pequenos gestos, frágeis e ternos.
Há um lado metafórico no filme?
C - As montanhas do filme são uma metáfora das montanhas que temos de escalar na vida. São os nossos pais. Podem ser tanta coisa. Mas confrontam-nos com o que se passa no nosso interior.
Relações entre pais e filhos é um tema recorrente na sua obra.
F - É verdade. Nós também somos pais. Começámos a olhar para os nossos pais de forma diferente. Estes temas fazem parte das histórias que nos atraem e que temos vontade de contar.
C - Pusemos também muito das nossas próprias sensibilidades. Eu identifico-me muito com este tema do pai afastado, que não está quando se quer e que temos alguma dificuldade em perdoar. E que depois morre. O Félix também tem uma história muito particular com o pai.
A banda sonora é outro elemento importante do filme. Podem falar um pouco por exemplo sobre a escolha das canções?
C - A banda sonora é toda do Daniel Norgren. Tínhamos um disco dele lá em casa e pensámos que a música deste homem encaixava perfeitamente no filme. Não sabemos porquê, mas pensámos o mesmo. Ele leu o guião e disse logo que sim. É um sueco que vive no meio da floresta, onde se vai inspirar para escrever as suas músicas.
Finalmente, o filme é um grande hino à amizade.
C - Nem sempre é fácil ser o melhor amigo de alguém. Toda a gente que tem um melhor amigo sabe que não é com ele que vai construir uma família ou com quem vai viver. Mas mesmo que não se vejam durante muito tempo há sempre uma grande alegria quando se reencontram. É isso a amizade, mesmo que haja uma certa melancolia e uma certa dor. A amizade é uma outra forma de amor. Construímos o nosso filme como uma história de amor.