"Bad luck banging or loony porn", de Radu Jude, vence 71.ª edição da Berlinale.
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Termina hoje a primeira parte da edição de 2021 de um dos festivais mais importantes de cinema do mundo, a Berlinale, após cinco dias de visionamento online da sua programação, num formato pensado para os profissionais da indústria e para a imprensa. Seguir-se-á, em junho, ao vivo e a pensar no público berlinense, a exibição dos filmes que os júris premiaram ontem e hoje.
Um júri composto por seis vencedores anteriores do troféu mais desejado do festival entregou o Urso de Ouro ao filme romeno "Bad luck banging or loony porn". O tom provocador do filme confirma-se desde as primeiras imagens, onde vemos um vídeo porno doméstico, que mais tarde descobrimos ser de uma professora de liceu e do seu marido que, por lapso, o enviou para a internet.
O que se segue é uma viagem da protagonista por uma Bucareste sob a pandemia - o único filme a que assistimos a assumir o uso de máscaras pelas suas personagens e pelas pessoas com que se cruza - ao mesmo tempo que tenta minimizar os estragos do que não passou de um jogo privado, mas se tornou rapidamente um vício público. É isso que a nossa professora vai ter de explicar, numa espécie de tribunal, face a colegas e pais de alunos, que irão votar a sua permanência, ou não, nos quadros da escola.
O resultado? Só vendo o filme. E a provocação é levada ao delírio, num final orgiástico e surreal, que terá seduzido o júri a entregar o prémio mais desejado do festival ao romeno Radu Jude, cuja obra já tinha sido aliás premiada na Berlinale e que o público do Curtas Vila do Conde conhecerá pelas suas curtas-metragens. Um filme que questiona a moralidade, o direito à privacidade, o poder das redes sociais e mais alguns alvos contra quem o realizador vai disparando pelo caminho.
Com apenas 15 filmes para ver e seis prémios para atribuir, o júri consegui deixar de fora algumas das melhores obras da competição, como o libanês "Memory box", o iraniano "Ballad of the white cow" e sobretudo "Petite maman", da francesa Céline Sciamma. Negação da evidência, necessidade de afirmação de algo diferente ou uma mera questão de gosto? Afinal, nenhuma decisão de um júri será recebida consensualmente.
O júri decidiu então entregar os seus dois Ursos de Prata de consolação, o Grande Prémio do Júri e o Prémio do Júri, respetivamente a "Wheel of fortune" and fantasy" do japonês Ryusuke Hamaguchi e a "Mr. Bachmann and his class" de Maria Speth, e o prémio de Realização ao húngaro Dénes Nagy, por "Natural light".
No primeiro ano em que o prémio de interpretação não é entregue a um ator e a uma atriz, não diferenciando género, a sorte coube à alemã Maren Eggert, protagonista de "I"m your man", havendo ainda um prémio para interpretação secundária, conquistado pela jovem húngara Lilla Kizlinger, pelo filme "Forest - I see you everywhere". E há ainda dois prémios do júri oficial, para o argumento de "Introduction" de Hong Sangsoo, e para a Contribuição Artística dada pelo montador do mexicano "Una película de policias", Ybrán Asuad - a Netflix com entrada direta para o palmarés da Berlinale.
"Alice Diop" vence prémio de melhor filme dos Encounters
No segundo ano de existência, a secção Encounters voltou a revelar-nos filmes que apontam para novos caminhos na abordagem das formas cinematográficas. Com uma qualidade média que não ficou atrás dos filmes da Competição, o júri decidiu entregar o prémio de Melhor Filme ao comovente "Nous", de Alice Diop, uma realizadora francesa de origem senegalesa que, em registo documental,, fala de alguns de "nós", gente que procurou outras terras para conseguir algo de melhor na vida, neste caso a França, entre as quais a sua própria família.
Os Encounters premiaram ainda o vietnamiano "Taste" de Le Bao (Prémio Especial do Júri), os suíços Ramon e Silvan Zurcher e o canadiano Denis Côté como melhores realizadores, ex-aequo, respetivamente por "The girl and the spider" e "Hygiène sociale", cabendo ainda uma menção especial ao experimental "Rock bottom riser" do americano de origem portuguesa Fern Silva.
A Berlinale termina esta sua primeira etapa de 2021 com uma certeza: o cinema está bem vivo. Grande parte dos filmes foram exibidos em estreia mundial ou em primeira apresentação fora dos seus países de origem e tiveram algumas das suas fases de produção, senão mesmo todas, já em plena pandemia e, em alguns casos, em situação de confinamento. O cinema continua, os seus atores têm conseguido realizar os seus projetos, só falta mesmo podermos todos voltar às salas de cinema e vermos em conjunto estas e outras propostas de filmes, para nos questionar, nos emocionar ou nos divertir, ou um pouco de tudo isso.
Hoje é ainda dia de ver dois filmes em competição, o mexicano "Una película de policias" de Alonso Ruizpalacios, uma original abordagem da instituição policial do país através de dois atores que vamos vendo no processo de se colocarem na pele de dois agentes da polícia, e o alemão "Mr. Bachmann and his class", fresco documental de três horas e meia sobre um professor de métodos únicos, à beira da reforma, e da sua turma, composta por alunos de origem diversa. Ou de como é pela educação que temos de começar se ainda há alguma esperança de mudar o Mundo.
Sinal de que o cinema não tem apenas um modelo e que a diversidade estilística e de conteúdos deve ser valorizada, contra um circuito de sala cada vez mais ocupado por um tipo de cinema standard, a Berlinale mostrou-nos que é possível passar do thriller político "The Mauritanian" (Berlinale Specials), com Jodie Foster e Tahar Rahim na adaptação por Kevin Mcdonald do diário de um preso de Guantánamo acusado de ser um dos cérebros do 11 de setembro, para a alegoria sobre a cultura popular "Tzarevna Scalling" (Forum), da estreante Uldus Bakhtiozina. Ou do norueguês "Ninjababy" (Generation), de Yngvild Sve Flikke, abordagem irreverente e original sobre a maternidade indesejada de uma jovem criadora de banda desenhada, para o sérvio "Celts" (Panorama), da estreante Milica Tomovic, passado no período de desmantelamento da antiga Jugoslávia, de que uma festa familiar se torna microcosmos, com todas as suas tensões políticas, sociais e sexuais.