Apenas uma coprodução portuguesa esteve presente nos 45 filmes exibidos. Diretora do festival afirma que "Portugal tem de fazer mais e melhores filmes".
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Terminou em Valetta, a capital de Malta, a segunda edição do Mediterrane Film Festival, com a cerimónia de entrega de prémios a decorrer no Forte Manoel, uma das muitas fortificações construídas ao longo da ilha.
Independente desde 1964, o território foi ao longo dos séculos local de habitação de várias civilizações, pela sua localização geográfica no meio do Mar Mediterrânico, a menos de uma hora de barco da Sicília, tendo sido alvo de vários cercos e ataques, o último dos quais durante a Segunda Guerra Mundial, quando ainda pertencia ao império britânico.
O Forte Manoel foi mandado construir no século XVIII, pela Ordem de São João, durante o reinado do Grão-Mestre português António Manoel de Vilhena. 66º Príncipe e Grão-Mestre da Ordem de São João de Jerusalém, governou o território desde 1722 até à sua morte, em 1736. Ao contrário de outros Grão-Mestres, é hoje considerado um dos mais populares, sendo conhecido ainda pela construção do Teatro Manoel, a renovação da cidade interior de Mdina e a abertura de mulheres ao sistema de educação, algo raro à época.
Voltando ao festival, depois de uma primeira edição apenas com nove filmes, um por cada um dos países do mediterrâneo europeu, incluindo Portugal, numa visão lata da geopolítica, o festival virou-se para os países da bacia mediterrânica do norte de África e aumentou para 45 o número de títulos selecionados, entre competição, fora de competição, uma seção dedicada a filmes de temática ambiental, um olhar sobre o cinema local, sobretudo em coprodução com outros países europeus e uma seção destinada a obras de Realidade Virtual.
O programa foi ainda complementado com uma série de painéis e masterclasses, destacando-se um encontro com o realizador britânico Mike Leigh, uma visão sobre a obra cinematográfica de David Bowie ou uma masterclass com o montador habitual de Yorgos Lanthimos, o veterano Yorgos Mavropsaridis.
O festival mostrou, no entanto, inúmeras dores de crescimento na sua fraca organização, deixando jornalistas entregues a si próprios, discriminando alguns sem nenhuma razão aparente, falhando em toda a linha no serviço de transportes de um lado para o outro, numa ilha onde, apesar da sua reduzida extensão, é difícil passar de um lado para o outro dada a sua costa imensamente recortada e anulando projeções e visitas sem nenhuma explicação.
Ficou-se uma nova visita aos imensos estúdios de cinema de Malta, ilha onde foram rodados dezenas de filmes e série de televisão, como “Game of Thrones”. O JN já havia visitado os estúdios no ano passado, mas nessa altura Ridley Scott encontrava-se a filmar “Gladiator 2”, e a maior parte dos estúdios estavam fechados aos olhares sempre atentos dos jornalistas.
Voltámos então a ver agora os gigantescos tanques onde são rodados muitos filmes com ação debaixo de água, podendo então passar algum tempo pelos restos dos cenários não só de “Gladiador 2” como do seu antecessor e ainda do “Napoleão”, também de Ridley Scott. Isto apenas a alguns dias da chegada aos estúdios da equipa de rodagem de mais um capítulo da saga “Mundo Jurássico”.
Voltando à sessão de encerramento, esta contou com a presença de Johann Grech, responsável máximo da Malta Film Commission, que prometeu, no seu discurso, evocando o centenário do cinema em Malta, a duplicação do valor que entra na ilha, com o correspondente acréscimo de mais e melhores postos de trabalho para a população local.
A cerimónia tinha sido iniciada com um breve discurso da Presidente de Malta, Myriam Spiteri Debono, que salientou a importância do festival para a promoção do país. Mas foi mais longe, indicando que “enquanto em 2017 apenas 300 cidadãos de Malta trabalhavam na indústria de cinema, e apenas esporadicamente, hoje em dia há cerca de um milhar de pessoas a trabalhar na área, a maior parte todo o ano, passando de uma produção para outra”. E concluiu referindo um acordo para que os trabalhadores locais tivessem as mesmas condições salariais que os estrangeiros que vêm trabalhar nas produções que aqui se filmam.
Depois de prémios de carreira atribuídos a Mike Leigh e à produtora local Rita Galea, foram anunciados os principais prémios do festival, com a coprodução hispano-portuguesa “O Corno do Centeio”, já estreado nas nossas salas, a ficar de fora do palmarés.
Na competição oficial, o prémio de Melhor Filme foi para o turco “Life”, de Zeki Demirkubuz, o Prémio do Júri para “To a Land Unknown”, de Mhdi Fleifel, representando a Grécia, Dinamarca, Reino Unido e Países Baixos, o prémio de Melhor Realização foi atribuído a Brandt Andersen, pela produção jordana “The Stranger’s Case” e o prémio de Melhor Argumento recaiu em Stéphane Brizé e Marie Drucker, pelo filme francês “Hors Saison”, realizado pelo primeiro.
O júri oficial entregou ainda prémios de interpretação a Yasmine Al-Massri, por “The Stranger’s Case”, de Fotografia a Carlos Alfonso Corral, por “The Damned”, coprodução entre Estados Unidos, Itália e Bélgica, dirigida por Roberto Minervini e Direção Artística a Myrte Beltman, por “Sweet Dreams”, produção entre os Países Baixos e a Suécia, dirigida pela Bósnia Ena Sendijarevic.
Nas restantes seções foram ainda premiados filmes da Índia, França, Reino Unido, Taiwan e Argentina.
Teresa Cavina: “Portugal tem de fazer mais e melhores filmes”
Para a sua segunda edição, o Mediterrane Film Festival entregou a direção artística à italiana Teresa Cavina, veterana de festivais como Veneza, onde foi programadora de 1989 a 1997, de Locarno, que codirigiu entre 2001 e 2005, antes de fundar o Festival de Roma, no ano seguinte. Com passagem ainda por Sarajevo, El Gouna (no Egito) ou Abu Dhabi, Teresa Cavina tem também experiência em vários fundos e laboratórios de escrita onde se procuram novos talentos, para assegurar o futuro do cinema.
Antes da cerimónia de encerramento, o JN esteve a falar com Teresa Cavina, confrontando-a diretamente com a ausência de filmes portugueses. “Tentámos o filme de Miguel Gomes que esteve em Cannes, mas não o conseguimos. Temos uma coprodução com Espanha. E Portugal não é banhado por uma gota sequer do Mediterrâneo. Mas Portugal tem de fazer mais e melhores filmes”, rematou.
Teresa Cavina falou-nos sobre os principais desafios que enfrentou. “É sempre um grande desafio, quando temos de pensar na segunda edição de um festival. Ainda está na sua infância. Tem de crescer. Há ainda muitas coisas em que se tem de pensar.” E continuou: “Em termos de estrutura, o festival já estava organizado em torno do Mediterrâneo, mas achei interessante dar também um olhar sobre o que se passa à volta do mundo. E claro que tínhamos de estar atentos às questões ambientais”
Sobre esta fatia importante da programação, a sua responsável confessou: “Criei essa seção que quero que seja uma mostra do triunfo da natureza, porque a estamos a destruir. Depois de ver o primeiro “Avatar” e ver o que estamos a fazer, fiquei desgostada com o mundo real, tão diferente do universo do filme do James Cameron. Esses filmes que nos colocam no seio da natureza são importantes, porque nos mostram aquilo que estamos a destruir.”
Com filmes exibidos ao ar livre, no centro de Valetta mas também num centro comercial numa outra zona da ilha, St. Julian, muito requisitada pelos turistas mais jovens, solicitámos à programadora um balanço da relação do festival com o público. “A reação na Praça dos Grão-Mestres, com as projeções noturnas ao ar livre foi excelente. Muito acima das minhas expetativas”, começou por nos dizer. “Com tantos filmes americanos nas salas é importante dar a conhecer ao público mas também aos jovens realizadores locais filmes de outras origens. Dou sempre o exemplo de Picasso, que passava dias e dias no Louvre a copiar tudo o que podia, para depois fazer algo de novo.”
Teresa Cavina realçou a importância de um festival de cinema, de um evento cultural, neste local privilegiado pela História “Malta é uma ilha que trouxe diversidade à Europa. Não nos podemos esquecer que a língua maltesa é uma mistura de hebreu com árabe”, recordou. “Este ano tivemos filmes do Norte de África. E não podemos esquecer que temos a diáspora. O Lanthimos felizmente voltou à Grécia, mas passou muito tempo
em Inglaterra. E o magnífico “Tuesday”, coprodução entre Inglaterra e os Estados Unidos, é realizado por uma croata, que tem o seu país no coração.”
Para finalizar a nossa conversa, quisemos saber o que será necessário para uma continuidade do festival, num panorama internacional onde eventos como este aparecem e desaparecem rapidamente. A resposta não podia ser mais direta: “Dinheiro e público”. E conclui: “Eu sei lidar com a indústria e sei lidar com o público. A maior parte dos festivais de hoje têm duas almas, uma virada para a indústria, outra para o público. Um festival é tão forte como as suas raízes. Se nos conseguirmos enraizar em Malta, o festival vai crescer. Se não conseguirmos, desaparecerá.”