"The Siren", da iraniana Sepideh Farsi, aborda a memória da guerra entre o Irão e o Iraque, e "White plastic sky", dos húngaros Tibor Banoczki e Sarolta Szabo reflete sobre o aquecimento global com poesia crítica.
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Há cinema de animação na competição oficial do Festival de Berlim, mas vai chegar mais tarde. Enquanto isso, algumas das outras sessões da Berlinale não hesitaram em selecionar filmes deste género. E não foi favor nenhum, muito pelo contrário, mostrando como a animação é, cada vez mais, uma forma privilegiada de olhar para o nosso mundo.
É o que acontece com "The Siren", da iraniana Sepideh Farsi, que nos fala da memória da guerra entre o Irão e o Iraque, no dealbar da revolução islâmica, e de "White plastic sky", dos húngaros Tibor Banoczki e Sarolta Szabo, ambientado num mundo futurista, mas falando das questões ambientais que nos preocupam hoje.
"The Siren" é a primeira obra de animação da realizadora iraniana, há muito exilada no ocidente, onde faz um cinema sempre muito crítico em relação ao regime que impõe com braço de ferro a lei islâmica à população iraniana. O filme parte da memória pessoal da realizadora e da sua família sobre os acontecimentos que rodearam a tentativa de ocupação da cidade petrolífera de Abadan pelo exército iraquiano, e o título evoca o nome do barco onde, sob a liderança do jovem protagonista, um grupo de homens e mulheres conseguiu escapar da cidade sitiada.
No entanto, para além do evento histórico, o filme de Sepideh Farsi vai muito mais longe na crítica ao atual regime, falando de limitações à liberdade individual como o uso obrigatória de lenço pela mulher, a proibição de cantar ou do consumo de álcool.
Em encontro com o JN, a realizadora, uma das vozes mais críticas sobre a situação atual no seu país, mostra-se otimista em relação à queda do atual regime, mas assume que, neste momento, não lhe é permitida a entrada no país. "Ou melhor, deixavam-me entrar, mas depois já não podia sair"!
Menos otimista está a atriz Mina Kavani, que no filme dá a voz às duas personagens centrais, o jovem herói Omid, de 14 anos, e a jovem que ele salva, juntamente com a mãe desta, uma antiga cantora muito popular, agora caída em desgraça e impedida de exercer o seu trabalho.
Mina Kavani também vive fora do Irão e foi dirigida, à distância, por Jafar Panahi no filme "Ursos não há", neste momento em exibição. "Depois do Jafar ter sido libertado estivemos a conversar, sim", disse-nos, recordando que o realizador fora preso e iniciara uma greve de fome antes de ser muito recentemente libertado.
Num registo diferente, "White plastic sky" ambienta-se num futuro próximo, onde não há mais animais ou plantas na Terra e os seres humanos que resistiram vivem debaixo de uma cúpula de plástico.
Mas o preço da sua sobrevivência é muito elevado: aos 50 anos de idade, são implantados com uma semente especial que os transforma numa árvore que fornecerá oxigénio e alimento para a comunidade. Um jovem aceita este sistema, até ao dia em que a sua esposa decide desistir da vida e submeter-se à implantação voluntária. Impulsionado pelo seu amor por ela, o nosso herói decide quebrar as regras da sociedade a fim de a salvar.
Com um visual cativante e uma mensagem onde o pessimismo ambiental se cruza com a poesia e a esperança da revolta, o filme funde também um intenso trabalho de pesquisa junto de geólogos, biólogos e meteorologistas com a própria visão dos realizadores, que há muito trabalham juntos e se estreiam aqui na longa-metragem.
Dois filmes que, o melhor que se pode dizer de ambos, é que ao fim de alguns minutos nos esquecemos que estamos a ver um filme de animação, sentindo apenas que estamos a ver um filme. Cinema, e bom cinema.
Entretanto, a competição começou em tons medianos. "The Survival of Kindness" leva a assinatura de Rolf de Heer e representa a Austrália, onde foi rodado. O filme começa bem, com uma mulher negra abandonada no interior de uma pequena jaula, no meio do deserto, enfrentando calor tórrido durante o dia, frio de gelar durante a noite e ausência de alimentação.
Não sabemos por que razão ela ali se encontra e esse primeiro troço do filme é de uma enorme angústia. Presumimos que algo de errado se passa no mundo exterior, e quando ela consegue finalmente libertar-se, encontra-se num mundo onde a raça branca domina e os refugiados são maltratados ou executados sem piedade. O problema de "The survival of kindness" é um daqueles filmes em que o autor da história, neste caso o próprio realizador, não sabe como a resolver e o final é pateticamente desajeitado.
Primeira entrada da Alemanha na competição, "Someday we"ll tell each other everything", de Emily Atef, tem a vantagem de se passar numa zona rural da Alemanha de Leste, pouco após a reunificação. Há esse contexto socio-político que dá alguma espessura ao filme, que se perde no entanto na relação atribulada e entre a paixão e o desejo violento, de uma jovem com um homem com o dobro da sua idade, vivendo um pouco à parte do resto da comunidade.
Entretanto, as conversas com colegas jornalistas de outros países vão ter sistematicamente aos dois filmes de João Canijo nas duas competições principais, a que dá o Urso de Ouro e a do Encounters. Um bom presságio para os filmes, que serão pela primeira vez exibidos apenas na próxima quarta-feira.