Houve duas ou três coisas extraordinárias, não te vou mentir, até podias nem gostar, mas devias ter vindo, baby, é preciso vir sempre para cá, vi aqui uma metralhadora incrível, desesperada a disparar palavras, decora o nome dela, Kate Tempest. E os Beak foram muito bons, e os Mão Morta cantaram parabéns, e o Sam Herring chorou, chorou mesmo, até ficou com a cara aflita, coitado dele.
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Não sei como é que te vou dizer isto, mas o concerto dos Future Islands foi melhor do que o do Porto em 2014, foi no Hard Club, lembras-te?, era Outubro, entramos cheios de desejo e casacos e cachecóis, e aquilo era um calor infernal, nunca vimos uma coisa assim, parecia que o ar fervia, nós todos enlatados e exaltados, não se conseguia ir lá à frente, não saímos daquele sítio, era um suadouro imenso, pingava suor até do céu, e houve gente a desmaiar. Pois foi, mas agora aqui em Coura ainda foi melhor - até a noite estava quente, e isso aqui nem é normal, faz sempre um frio fininho de rachar, se calhar são eles, os Future Islands, sabem segredos, têm poderes termostáticos, será?
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Ele é muito impressionante, o Sam Herring, agora tem uma barba esquisita, cheia de patilhas, parece que não é dele, a barba, que é do Logan, o Wolverine, e três anos depois, depois de ele ter ido à TV pasmar o Letterman, o Letterman só dizia "wow!, wow!", ainda hoje se fala na forma de ele dançar.
Não é fácil de mostrar, mas tu já viste, baby, é demolidor, ele arca as pernas, põe-se tenso, abre os braços todo grave e é um discóbolo a revolutear. Depois pára e depois arranca, é de repetente, repentiníssimo, ele bate as mãos no peito, bate com força, bate no chão, nós ouvimos o eco seco, parece um pirómano a querer chegar fogo ao coração. Ou parece um boomerang a voltar ou um boxeur com a bacia do John Wayne, e a noite avança, e ele roda, e transpira muito, tem a camisa Cohiba já ensopada, e agora ele parece a mulher de Shiva, a deusa Durga, que tem oito, dez, 12 ou 16 braços, é incrível, é um polvo negro de pé a socar o ar.
Tu sabes, baby, aqui mandam as guitarras, estamos cercado de cordas de metal, é assim desde o princípio, em 93, e são guitarras das altíssonas, aqui adoram o Ty e o Josh Homme e os Pond e os Drive In, adoram ver vespeiros vivos, por isso é que foi mesmo comovente ver a encosta toda cheia, ninguém arredou pé, a ver uma banda de synth pop, só de baixo (e que baixo a rebolar!), bateria e teclas, e o Sam, o Sam parece antigo, faz mexer tudo mais lentamente, ele é tudo menos normal.
Achei o concerto um bocadinho longo, o Serginho adorou, disse que passou a voar, nós fomos lá para a frente, é preciso ir sempre à frente, é o único sítio onde se deve estar, mas eu tirava-lhe três ou quatro canções do meio, ficava só com os hits, os supremos como o "Ran", "Dream of you and me", "Where I found you", o "It takes time", o "Cast away", o "Seasons (waiting on you)" e fechava por aqui. Esta canção foi "aquela", é um super-hit, é aquela que todos queríamos ouvir cantar, demorou, foi a 11.ª, estávamos todos à espera e ao primeiro acorde sintetizado ouviu-se na encosta um longo "ahhh", foi um alivio, e desatamos todos a dançar, extasiados, como nos antigos jogos gregos cheios de sol.
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Foi aqui, no fim dessa canção, a "Seasons", uma canção que ele diz que "é sobre aquela pessoa de quem estamos à espera", que ele cantou com a voz tremente, à beira da dissolução, com pequeninos berros cavernosos, que ele chorou, estava aflito, ficou parado a olhar para nós, a cara numa compunção, e desatou a chorar emudecido, agradeceu e sai de palco rapidamente sem ar.
Mas deixa lá, baby, o concerto todo, bem vistas as coisas, afinal é só synth pop, foi só um 4, não foi um 5 em 5, e havemos de estar juntos outra vez para os ver.
Mas depois aconteceu uma coisa extraordinária, era muito tarde, quase duas da manhã, ninguém contava, poucos sabiam, acho que só os ingleses é que a conheciam, e nada nos podia ter preparado para o que íamos ver: uma mulher pequena metida camuflada num macacão preto, uma poeta, uma rapper que é uma "machine gun", que dispara literalmente palavras, uma metralhadora verbal.
Ela é a Kate Tempest, e nunca vi nada assim, baby, juro, uma verborreia monumental, ela não se cala um segundo, é uma língua demoníaca ali a envenenar, sempre a disparar, sempre a rapar, rápida, muito rápida, a fazer duplos tempos, triplos tempos sem parar. E aquilo que ela canta, baby, é demolidor, ela diz-nos o que andamos a fazer, somos mortos-vivos numa rede social que não é real, somos cães a lutar pelo último osso, somos canibais sociais, e ela diz-nos, sempre a matraquear, uma mulher impossível de calar, que devíamos estar desesperados porque há uma tempestade a bater à nossa porta, maravilhosa e desatinada Kate, que arrepiante postal de terror.
E nem te vou falar dos subgraves que a banda dela arremessava, havia duas mulheres nas teclas atrás dela, uma delas era muito bonita, e tinha um baterista negro com uma t-shirt branca que dizia Demons, mas aqueles subgraves, baby, que maravilha, que redenção, são melhores ainda do que os do Bug, o The Bug que enfeitiçou Barcelos, no Milhões, já por duas vezes. Deixa-me só dizer-te, baby, como é que aquilo acabou, foi tão certo, tão certeiro, caramba, fiquei agarrado ao coração. Ela disse: isso do mito do indivíduo é uma merda, não existe, o individualismo, isso deixa-nos desconectados, só o amor nos pode salvar, só o amor nos pode voltar a ligar, deixem-se de hedonismos, amor incondicional, por favor.
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Já nem te vou chatear com o resto, baby, não queres saber dos Mão Morta, tu ris sempre quando ouves o Canibal, o nosso avô cavernoso, a falar naquela voz cavada, parece a voz de um carvalho, mas ele é o maior, é mesmo, baby, pôs-nos a todos a cantar os parabéns a Coura - "e-ao-menino-Courinha-uma-salva-de-palmas" -, foi tão bonito, eles tocaram os salmos das cidades do "Mutantes S21" e tocaram o "Bófia", foi pena não tocarem o "Oub"la", o "E se depois", o "Aum", o "Até cair".
Nem te vou falar dos Beak, lembras-te dos Beak?, eles estiveram na pradaria do ATP do Primavera Sound do Porto, o Germano estava lá, o Germano sabe, mas aqui também foi ainda melhor, foi mais sexy, a competência é uma coisa tão sexy, não achas?, como pode ser belo o krautrock, e eles são cómicos, são mesmo, disseram que tocaram para a sua maior plateia de sempre e o Geoff Barrow, o Geoff devia usar uma capa como a do Galdalf, ele é um feiticeiro, é o tipo dos Portishead, que maravilha era ver aqui Portishead, não era?, mas ele também se emocionou, mas menos, ele é inglês, e pediu para nos tirarem uma foto para ele mandar à mãe, "a minha mãe, vocês não sabem, mas ela vai adorar ver isto".
E o recinto, baby, sim, já estou a acabar, não te vou mais massacrar, o recinto está mais bonito, cresceu outra vez, está mais ordenado, tem néons do 25, está mais bem organizado, "aprimaverou-se", sabe cada vez melhor vir para cá, mas quando chegas?, baby, anda, anda já, já saíste?, quanto tempo vais demorar?