Realizador Alain Ughetto e produtor português Luís Correia falam da animação "Interdito a Cães e Italianos"
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O cinema português de animação vive um momento extraordinário. Depois da nomeação para os Óscars da curta "Ice Merchants", de João González, aguarda-se as estreias das duas primeiras longas do género produzidas em Portugal, "Nayola", de José Miguel Ribeiro e "Os Demónios do Meu Avô", de Nuno Beato. Entretanto, estreia outra longa, "Interdito a Cães e Italianos", história da emigração de Itália para França dos antepassados do mestre da animação Alain Ughetto, que contou com participação portuguesa, através da Ocidental Filmes, de Luís Correia.
Porquê só agora um filme tão pessoal e autobiográfico?
Já estou reformado. Fiz muitos filmes para a televisão e documentários. Quis fazer este testemunho, para os meus filhos e para os meus jovens. Para lhes mostrar de onde é que vim. Que os jovens façam as suas vidas, mas que saibam que houve pessoas que viveram guerras, epidemias e que se mantiveram de pé e dignos. Precisava de o fazer.
A que memórias recorreu, apenas as suas ou a de outros testemunhos?
Para a última parte do filme, quando estão em França, perguntei a vários primos que conheceram os meus pais o que sabiam o que eles viveram. Uma grande dádiva foi encontrar um livro, "O Mundo dos Vencidos", escrito por um sociólogo italiano, Nuto Revelli, que gravou testemunhos de pessoas da idade dos meus avós e que viviam no mesmo lugar. Testemunhos da guerra, da miséria, mas de dignidade.
Qual é a ressonância deste filme para os dias de hoje?
Há um eco, sim, apesar de estar a contar uma história pessoal. A certo ponto olhei para uma fotografia da escola, devia ter uns doze anos, e os nomes dos meus colegas eram todos italianos. Estava a contar a minha história, mas também a deles, porque houve imensas famílias que emigraram, para darem uma vida melhor aos seus filhos. Não podiam aguentar a miséria e partiram. Como hoje, em tantos países. Há imensos portugueses em França, como italianos e polacos.
No caso da sua família, porquê a França?
A França era um país rico, toda a gente queria ir para lá. Quis também saber que miséria era essa que os levaram a partir e porque ficaram em França, uma sociedade que não os queria. Havia mesmo cartazes a dizer "interdito a cães e italianos".
Então esse episódio que dá o título ao filme baseia-se mesmo em factos verídicos?
Sim, esses cartazes encontravam-se na Bélgica, na Suiça, na Savóia francesa. É abominável. De uma incrível ignomínia.
E a explicação que o pai dá aos filhos, de que o que quer dizer é que há o perigo dos cães morderem os italianos, é também real ou ficção?
É invenção minha. Mas corresponde à educação que tive. Nunca soube a idade dos meus pais. Festejávamos os nossos aniversários, mas nunca os deles. Para nos proteger, nunca falavam dos problemas deles. Mas as crianças acabam por saber tudo.
De onde veio essa ideia de misturar animação com alguma imagem real?
Essa ideia esteve sempre presente. É a história da minha família, eu tinha de estar presente. E as mãos, as minhas mãos que se veem no filme, achei que eram o mais elegante que podia mostrar. Como alguém que faz bricolage no seu ateliê. As mãos e a voz, porque é também a sua voz que ouvimos. Juntamente com a da Ariane Ascaride.
Escolheu-a pelo seu empenhamento em causas sociais?
Não, escolhi-a porque também é de origem italiana. O avô não queria que ela falasse italiano. De certa forma é alguém que viveu o mesmo que eu.
Como é que se estabeleceu esta parceria com uma produtora portuguesa?
Na realidade estávamos num impasse. E foi o meu produtor, o Alexandre Cornu, que encontrou o Luís Correia, que se integrou de imediato no espírito do filme. Portugal conheceu os mesmos problemas que Itália ou Espanha. Foi um grande prazer trabalhar com Portugal. Foi apaixonante. Deu espessura ao filme, trabalhar com pessoas de outra cultura e com outra maneira de ver as coisas. Para mim foi muito importante.
Luís Correia: "Quando acabámos a rodagem plantámos uma árvore"
O produtor português explicou como chegou ao projeto e qual a participação nacional. "A primeira parte da rodagem já tinha acontecido quando eu cheguei. Devido ao covid, a produção tinha sido interrompida. O Alexandre Cornu, produtor do filme, conhece-me há vinte anos. Temos uma grande cumplicidade na área do documentário, onde fiz quase toda a minha vida profissional. Mas há 40 anos, quando era muito jovem, fiz algumas experiências na animação. E este era um projeto intemporal e universal. Portugal conhece bem a emigração. Felizmente ganhámos o concurso do ICA para as coproduções minoritárias e foi esse apoio português que permitiu que o filme fosse retomado. Participámos na rodagem, mas em especial no "compositing", a parte do trabalho que permite limpar todas as imagens. E também na montagem e na mistura do som. O Alain veio cá e trabalhámos algum tempo em conjunto. Eu agora vivo no campo e quando acabámos a rodagem plantámos uma árvore."