Fotógrafa palestiniana morre em ataque a Gaza antes do seu filme passar em Cannes
Fatma Hassouna é uma das vítimas mortais dos ataques israelitas da última semana a Gaza, juntando-se aos mais de 51 mil mortos, muitos dos quais mulheres e crianças, causados pelo conflito desde 7 de outubro de 2023.
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Fatma foi morta, na última quarta-feira, por um míssil israelita que destruiu a sua casa. Tinha 25 anos. Os pais ficaram feridos, seis dos seus irmãos também morreram, entre os quais uma irmã, grávida de uma vida que nunca chegará a acontecer. O seu casamento estava agendado para dentro de dias.
Não se pode sequer falar em ironia do destino, porque aqui não há espaço para ironia, nem para destino. Mas na véspera, Fatma tinha recebido a notícia de que o documentário de que era protagonista, “Put your soul on your hand and walk”, tinha sido selecionado para a secção ACID do próximo Festival de Cannes, que terá lugar no próximo mês.
Horas antes de ser morta, Fatma tinha colocado nas redes sociais uma foto de um pôr-do-sol. “O primeiro que se via desde há muito tempo”, referiu. E fora ela a dizer: “Se eu morrer, quero uma morte barulhenta, não me quero numa notícia de última hora, ou num número com um grupo, quero uma morte que seja ouvida pelo mundo, um rasto que dure para sempre, e imagens imortais que nem o tempo nem o espaço possam enterrar.”
Será isso que irá acontecer certamente dentro de algumas semanas, na que se antecipa já como a sessão mais emotiva de Cannes, quando for exibido o filme onde se mostra o trabalho de Fatma, que testemunhava com a sua câmara o quotidiano da Faixa de Gaza sobre os contínuos bombardeamentos do exército israelita, punição desmesurada contra o atentado cometido pelo Hamas em outubro de 2023.
Sepideh Farsi, realizadora iraniana no exílio, autora do documentário sobre Fatma Hasouna, tinha falado com ela horas antes da sua morte, dando-lhe notícia da seleção para Cannes e convidando-a para estar presente. Após ter conhecimento da sua morte, a realizadora afirmou: “Ela era um sol. Estava a cobrir a guerra em Gaza, colaborando ocasionalmente com os meios de comunicação social, enviando fotografias e vídeos. Todos os dias me enviava fotografias, mensagens escritas e clips de áudio. Todas as manhãs, acordava e perguntava-me se ela ainda estaria viva.”
Através de um comunicado divulgado pela equipa da secção ACID de Cannes, e citando uma entrevista ao jornal francês Libération, a realizadora, além das palavras de pesar pela morte de Fatma Hasouna, que era licenciada pela Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade de Gaza, recorda como a encontrou. “Conheci-a através de um amigo palestiniano no Cairo, enquanto procurava desesperadamente uma forma de chegar a Gaza, passando por estradas bloqueadas, procurando a resposta a uma pergunta simultaneamente simples e complexa. Como é que se sobrevive em Gaza, sob cerco durante todos estes anos? Como é a vida quotidiana do povo palestiniano em guerra? O que é que Israel quer apagar neste punhado de quilómetros quadrados, com tantas bombas e mísseis? Eu, que tinha acabado de ver um filme, ‘The Siren’, sobre outra guerra, a do Iraque e do Irão.”
Falando do filme que com ela fez, a realizadora continua: “E assim, Fatma tornou-se os meus olhos em Gaza, e eu, uma janela aberta para o mundo, para ela. Filmei, captando os momentos oferecidos pelas nossas videochamadas, o que Fatma partilhava comigo, ardente e cheia de vida. Filmei os seus risos, as suas lágrimas, as suas esperanças e o seu desespero. Segui o meu instinto. Sem saber de antemão onde essas imagens nos levariam. É essa a beleza do cinema. A beleza da vida.
A Federação Internacional de Jornalistas estima que, desde o início dos ataques a Gaza, já foram mortos 157 jornalistas e trabalhadores de meios de comunicação social, embora outros relatórios indiquem que o número poderá já ter atingido as duas centenas.
A secção ACID é a mais recente do Festival de Cannes. Criada em 1992 por um grupo de cineastas independentes, a Association du Cinéma Independant pour sa Diffusion programou também para a sua edição deste ano a segunda longa-metragem de Pedro Cabeleira, “Entroncamento”.