Já está nos cinemas o último filme de François Ozon, "Correu tudo bem". O realizador francês falou ao JN.
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Um dos cineastas franceses mais prolíferos e talentosos da sua geração, François Ozon tem construído ao longo dos últimos 25 anos uma obra diversa nas temáticas e na abordagem, destacando-se títulos estreados em Portugal como "Sob a areia", "8 mulheres" e "Swimming pool" ou, mais recentemente, "Jovem e bela", "Graças a Deus" e "Verão de 85".
No seu último trabalho, "Correu tudo bem", já nas salas, aborda o tema da eutanásia através da adaptação do romance autobiográfico da escritora Emmanuèle Bernheim, a quem o pai, o famoso colecionador de arte André Bernheim, pediu para o ajudar a morrer depois de uma grave crise cardíaca o deixar meio paralisado. Como em França a eutanásia é crime, a solução foi dirigir-se à Suíça.
Em longa conversa com o JN, François Ozon começou por nos dizer que não foi tanto o tema que o interessou, mas sim a história de Emmanuèle Bernheim, de quem era amigo próximo e que o ajudara na escrita dos primeiros argumentos. "Fazer este filme foi uma maneira de ainda estar com ela. Ela morreu há alguns anos. Quis compreender melhor a relação entre um pai e uma filha. Mas claro que há esse grande tema da eutanásia".
Pode explicar a escolha de Sophie Marceau para protagonista?
Sou um grande fã da Sophie Marceau. É uma atriz da minha geração. Quando vi o "La boum" tinha a mesma idade dela, andava na mesma escola, era como se estivesse a ver a minha vida no ecrã. Há muito tempo que queria trabalhar com ela. Já lhe tinha proposto alguns papéis mas nunca tinha sido possível. Desta vez tinha a impressão que a história a ia tocar. E estava certo.
Para ela foi um regresso, há três anos que não filmava.
É muito tocante quando vemos o regresso de uma atriz. Talvez não tenha recebido boas propostas entretanto. O que gosto na Sophie é que tem 55 anos, está muito bonita e aceita ser mostrada como é, não está nada preocupada com glamour, como em Hollywood. Envolveu-se completamente no filme, aceitou filmar sem maquilhagem. Para quem é considerada uma estrela em França não é nada óbvio.
Até que ponto Sophie Marceau é parecida com Emmanuèle Bernheim?
Fisicamente não é nada parecida, mas tem a mesma vitalidade, a mesma energia. É tão luminosa como ela era. Em França é muito popular, os franceses adoram-na. Tinha a impressão que com uma atriz como ela seria mais fácil entrar na história e compreender melhor todos os factos.
Como é que foi trabalhar com André Dussolier? Ele deve ter-se divertido imenso a recriar esta personagem, apesar do seu lado trágico.
É um ator muito perfecionista. Ao princípio estava com muito receio, mas ao mesmo tempo excitado. Fizemos muita pesquisa juntos e tivemos a ajuda preciosa de um vídeo do verdadeiro André Bernheim, feito pela filha, a Emmanuèle. Foi muito tocante, vimos as últimas palavras dele à filha: "Quero morrer". Pudemos ver como tinha uma parte do rosto paralisado, como é que falava. Cada vez que o André tinha qualquer dúvida, voltava a ver o vídeo.
Os elementos humorísticos são um toque seu ou já estavam no livro?
Isso vem da personagem do pai. Ele não teve medo da morte. Encarou-a de frente, olhos nos olhos. Na nossa sociedade não o fazemos, escondemos isso. O facto de ser tão honesto em relação à morte e de estar tão disposto a falar sobre isso faz com que pareça humor negro. Normalmente, se falarmos assim tão abertamente da morte, as pessoas ficam chocadas. Não gostaria de ter um pai como ele, seria um autêntico pesadelo.
Essa ironia ajuda também a evitar todo o tipo de sentimentalismo.
O filme não é um melodrama. Queria que tivesse o ritmo de um filme de ação. No final é mais tranquilo e aí talvez as pessoas possam chorar. Mas o próprio pai não queria lágrimas. As filhas sim, queriam chorar.
Apesar de tudo, os espectadores podem identificar-se com estas personagens.
As pessoas podem ou não identificar-se com este pai e esta filha, mas a história está muito próxima do que aconteceu. Pascale, a irmã da Emmanuèle, ainda está viva e disse-me que, para a família, tudo o que tiveram de organizar foi como uma grande aventura. Tiveram de ir à polícia, o primo de Nova Iorque veio. Houve imensas peripécias, algumas divertidas, como com os condutores da ambulância no fim.
Apesar de não ser sobre a eutanásia, o filme fala do tema. Como não é permitida em França, pensa que o filme vai reabrir a discussão?
A discussão já existe, mas com o aproximar das eleições presidenciais ninguém fala disso. Penso que depois das eleições o debate vai voltar. Há ainda muitos lóbis religiosos em França. Estamos muito atrasados no que diz respeito ao casamento gay e à adoção por pessoas do mesmo sexo. Mas acho que o filme pode ajudar a compreender a intimidade das famílias e como é difícil para os filhos enfrentar a situação.
O que faria se estivesse nesta situação?
Ninguém próximo de mim me pediu para o ajudar a morrer. É impossível saber. Mas penso que a eutanásia devia ser autorizada. Devia ser organizada de uma forma muito rigorosa por uma lei para dar a oportunidade às pessoas, com parâmetros muito específicos. É permitida em vários países, vai chegar a nossa vez. Mas é preciso tempo. A maioria dos franceses é a favor da eutanásia.
O filme mostra também que esta é uma solução para já apenas ao alcance de alguns.
Sim, é um privilégio para os ricos, porque custa muito dinheiro, talvez mais de 10 mil euros. Sim, é muito injusto.
A personagem de Hanna Schygulla é muito humana.
Adoro essa personagem da senhora suíça. Passou a ser uma alemã a viver na Suíça porque queria absolutamente trabalhar com a Hanna Schygulla. Tenho uma grande curiosidade em relação a estas pessoas que ajudam outras a morrer. Não é um trabalho que gostasse de fazer. Mas era necessário explicar de onde ela vinha. Era uma juíza, vinha do lado da lei. Era mesmo assim, na realidade.
Ele acaba por ir sozinho, em paz.
Era suposto a filha ir com ele. Mas por causa da denúncia à polícia, o advogado disse-lhe para não ir, porque era muito perigoso. Podia ser acusada de cúmplice de um assassinato. Em França é considerado um assassinato.
Como é que decorreu a rodagem, durante a pandemia?
Foi terrível. Era suposto começar a filmar em março de 2020 e no primeiro dia de rodagem o país parou. Tivemos de mudar a rodagem para julho mas tivemos receio que não pudéssemos filmar, porque há muitas cenas que se passam em hospitais. Não sabíamos se íamos ter autorização de rodagem, porque os hospitais estavam cheios de doentes. Como a situação mudou no verão pudemos filmar. Mas por vezes foi difícil.
O que é ser considerado o jovem rebelde do cinema francês?
Já estou muito velho para ser o jovem rebelde. Mas não ligo nenhuma a isso. O que posso fazer? Talvez tenha sido uma forma de catalogar o meu trabalho quando comecei. O que tento é fazer sempre filmes diferentes. Mas precisei de tempo para contar esta história. Não teria sido possível filmá-la há dez anos. Cada filme é diferente. Eu vou mudando, depende sempre de onde estou na vida. O facto de ter testemunhado algumas mortes à minha volta ajudou-me a perceber melhor esta história.
A personagem central era também um rebelde.
Sim, foi um menino mimado. Eu também sou um pouco mimado, tenho a sorte de fazer um filme todos os anos. Gosto da liberdade deste homem. Reconheço-me um pouco nele.
Quando convidou a Charlotte Rampling para trabalhar de novo consigo ela disse logo que sim?
Disse que não, que era um papel pequeno. Eu liguei-lhe a pedir desculpa, era um papel pequeno, mas que a queria a ela. Nós somos muito amigos. Ela disse que sim também porque a Emmanuèle tinha-me ajudado bastante com o guião do "Sob a areia". Houve uma grande conexão entre a Emmanuèle, a Charlotte e eu, por isso foi uma forma de prestar um tributo à Emmanuèle. E a Charlotte está magnífica, apesar de serem poucas sequências.
A escolha da Hanna Schygulla tem também a ver com o seu apreço pela obra de Fassbinder, que a revelou?
Tenho uma grande paixão pelo Fassbinder, foi muito importante no meu processo de fazer filmes. Adoro a energia dele, a paixão, a sua forma de fazer filmes. Era uma força da natureza. É impressionante ver alguém falar da Alemanha tão olhos nos olhos, de uma forma tão profunda. Mas ele pertence a uma outra geração. É um dos filhos do fim da Segunda Guerra Mundial na Alemanha, um país que tinha de virar a página e seguir em frente. Havia uma grande hipocrisia em relação ao que se tinha passado. Ele teve a enorme lucidez de olhar debaixo do tapete. Eu venho de outro lugar.
Há uma dimensão política em "Correu tudo bem", como em vários filmes de Fassbinder.
Não tenho interesse em fazer filmes políticos, O que me interessa é fazer perguntas. Fazer este filme foi uma forma de compreender melhor a minha relação com a morte. E não sei o que faria se fosse confrontado com esta situação. Um dos meus pais perguntou-me e eu disse que não sabia. Não quero ser confrontado com esta situação. O filme permite ao espectador colocar-se essa mesma questão.
Os seus filmes lidam muitas vezes com a homossexualidade.
Desta vez não foi opção minha. O pai era bissexual. Pertence a uma geração onde não se vivia abertamente a homossexualidade. Casava-se com uma mulher, tinha-se filhos e tinha-se uma vida dupla. Era muito difícil para a filha e também para a mãe. A filha estava bastante aborrecida com a mãe, porque ela podia divorciar-se mas preferiu ficar.
Falou também com Serge Toubiana, o viúvo de Emmanuèle Bernheim?
Claro que sim, falei bastante com ele e com a Pascale Bernheim, a irmã. Deram-me muitas informações que acrescentei ao guião. A Emmanuèle morreu cinco anos depois com um cancro. Não consigo separar a morte dela desta história. Antes de morrer, já muito doente, disse-me que sentia como que o pai e a mãe a puxarem-lhe as pernas para a cova. Foi muito injusto, ela tinha apenas 60 anos.