Com "Peter von Kant", François Ozon homenageia Fassbinder. O filme já está nas salas.
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Em 1972, Rainer Werner Fassbinder adapta uma das suas peças de teatro ao cinema, assinando uma das suas muitas obras-primas, "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", sobre as relações de poder numa relação entre mulheres. Meio século mais tarde, François Ozon realiza "Peter von Kant", agora no mundo do cinema e com um homem como protagonista, personificando, de forma simbólica, o próprio Fassbinder. O realizador esteve a conversar com o JN.
Já tinha este projeto há algum tempo. Como é que se sente, depois de o concretizar?
Foi um prazer, porque adoro o texto original. Tinha algum receio, porque "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant" é um filme de culto e uma obra-prima. Não quis fazer um remake. Quis dar-lhe uma outra interpretação, segundo um ponto de vista francês. E com um olhar atual, falando de questões como poder, dominação.
Há algumas diferenças entre o original e o seu filme...
Mudei alguns elementos da peça original, para me apropriar da história e torná-la mais próxima de mim. É uma mistura do olhar de Fassbinder com outros elementos.
Até que ponto é que se sente artisticamente próximo de Fassbinder?
Ele foi muito importante no meu desenvolvimento enquanto estudante de cinema. Quando era novo andava sempre cheio de questões e penso que encontrei muitas soluções nos filmes dele. Os filmes dele estavam sempre cheios de liberdade. Na sua forma de trabalhar, na mudança de género de filme de um para o outro, no seu apetite pelo trabalho. Deu-me a certeza que podia fazer o que queria, ajudou-me a encontrar o meu caminho.
Os debates contemporâneos, nomeadamente do movimento #metoo, tiveram influência na sua abordagem ao filme, onde como disse se jogam elementos de poder?
Bom, no fundo não mudei assim tantas coisas da peça original. Esses temas do poder, da dominação, da vitimização, já existiam no original. As grandes alterações que fiz foi na profissão do protagonista, ela era criadora de moda, ele é realizador de cinema. Falo da relação entre um realizador e um ator.
O cinema é um meio que conhece perfeitamente por dentro...
Nos filmes há muitas hierarquias, muitas relações de poder. Como realizadores, temos de saber como usar esse poder. Para fazer um filme precisamos desse poder. É preciso alguém que dirija as coisas. Até onde é que podemos ir? São questões importantes. Será que sou um ditador? Por vezes, talvez. A minha relação com os atores e as atrizes pode ser complexa. Como com qualquer ser humano.
Os atores e as atrizes têm também as suas angústias. Como é que costuma dar-lhes confiança?
Eu não gosto de trabalhar no conflito. Gosto de trabalhar num clima de confiança com os atores. Os atores e as atrizes são pessoas inteligentes, temos de ser honestos com eles. Pelo menos não é a minha forma de trabalhar, conheço realizadores que o fazem. Talvez o Fassbinder fosse assim. Mas também há atores que gostam do conflito, não são só os realizadores. Também há atores masoquistas. Temos de nos adaptar aos atores.
Como é que convenceu Isabelle Adjani a fazer mais um dos seus regressos ao cinema?
Fiquei muito surpreendido quando aceitou. É um papel secundário. Mas gostou da história e da visão sobre o amor que o Fassbinder tinha. É algo que a toca muito. E sabia que eu desejava trabalhar com ela há muito tempo. Gostava muito de a ter tido no "8 Mulheres". É uma das minhas atrizes francesas preferidas, era um sonho tê-la neste filme. Divertiu-se muito a brincar com a imagem que tem de diva. Foi muito divertido trabalhar com ela.
Tinha um papel para ela no "8 Mulheres"?
Não. Mas na altura ela tinha deixado de trabalhar, foi um período muito complicado da vida dela. O filme era sobre atrizes e eu queria as melhores atrizes francesas. É claro que ela estava na lista inicial.
E a Hanna Schygulla, como é que reagiu ao seu convite?
Ficou muito contente. É o segundo filme que fazemos juntos. Penso que gostou muito de voltar aquela época, porque ela tinha feito a peça de teatro original. E conhecia muito bem a mãe do Fassbinder, deu-me muitas informações. Ela chegou com a sua humanidade e a sua ternura. Não havia isso na peça original, era importante falar de maternidade. E foi um sonho para mim dirigir a Hanna a cantar, como o Fassbinder fez em "Lili Marleen".
Quando se sofre por amor e quando se chora no cinema, normalmente é uma mulher. As coisas estão a mudar?
Espero que sim. Não é tão óbvio ver homens a chorar num filme. O que é uma loucura, porque na realidade os homens choram tanto como as mulheres. Mas numa sociedade patriarcal a imagem do homem é sempre diferente. Era importante partilhar as lágrimas da personagem, simpatizar com ele. A versão do Fassbinder era mais brutal. Para mim, era importante perceber o seu sofrimento. E pedir a um ator para chorar, a sério.
Precisamente, o Denis Ménochet enche o filme. Quanto tempo demorou até encontrar o ator certo para o papel?
Para mim era óbvio. Conheço o Denis há muito tempo, fizemos dois filmes juntos. Tinha pensado nele, fisicamente, é evidente. Mas também ao mesmo tempo pela sua fragilidade e pela sua força. Parece um ogre, mas é muito frágil. Adoro essa combinação.
Já o tinha em mente quando escreveu a história?
Quando decidi mudar o sexo da personagem central, vi que o Fassbinder, quando escreveu a peça, tinha apenas 25 anos. E quando decidi colocar a história no meio do cinema, perguntei-me quem poderia ser o génio atual de 25 anos. Um nome veio-me à ideia: Xavier Dolan. Já o conhecia, mandei-lhe o guião. Adorou, mas precisava de pensar. Finalmente disse-me que adorava a história, percebia o que eu queria, mas não podia fazer o filme porque as pessoas iam pensar que ele era o Peter von Kant. Claro que percebi.
O apartamento e o guarda-roupa são também como que personagens do filme...
Queria algo muito estilizado, muito anos 70. Trabalhámos muito com a equipa de decoração. É uma mistura do francês Yves Saint-Laurent, de Andy Warhol, o espaço é como a Factory, e de outras influências da época. Mas não do kitsch dos anos 70 que estamos habituados a ver no cinema.
Há duas canções no filme...
Uma é do original. A outra, "Each Man Kills the Thing He Loves", é do "Querelle", onde era cantada pela Jeanne Moreau. Aqui é a Isabelle Adjani que a canta, em alemão.
O Ozon faz um filme quase todos os anos, mas o Fassbinder fazia quatro ou cinco. Consegue compreender a necessidade que ele tinha de nunca parar?
O cinema era a vida dele. Estava sempre a trabalhar. Acho que ele não fazia diferença entre a sua vida e os filmes. Filmava os seus amantes, fazia os filmes com as pessoas com quem vivia. Era tudo uma grande confusão. Talvez desse uma força acrescida ao trabalho, mas era muito difícil para a sua vida privada. Eu também gosto de fazer filmes. Talvez o meu produtor gostasse de me ver descansar um pouco. Sinto que tenho muita sorte. Os meus filmes não custam muito dinheiro, tenho liberdade para os fazer e uso-a.