
Carmen Amaya, a mulher cigana nascida nas vésperas da I Guerra Mundial, na Catalunha, que vivenciou a Guerra Civil de Espanha e a II Guerra Mundial e acaba a dançar para o presidente dos Estados Unidos da América e em Hollywood é o fantasma de "Fugaces" de Aina Alegre que se apresentou na quarta-feira no DDD.
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O espetáculo tem, esta quinta-feira, uma nova récita, às 21.30 horas, no Palácio do Bolhão, no Porto.
Carmen Amaya nasceu em 1913, no bairro cigano do Somorrostro, em Barcelona, Espanha. Vinda de uma família de músicos e bailaores, começou a dançar, acompanhada pelo pai, o guitarrista El Chino. Rapidamente ganhou notoriedade pela intensidade e originalidade da sua dança - especialmente pelo uso da técnica de zapateado, até hoje considerado o mais rápido e mais forte. Comprovam estudos científicos que isto se deve ao facto de sapatear na praia onde vivia.
A sua carreira internacional levou-a aos Estados Unidos, América Latina e Europa, onde atuou para presidentes como Franklin D. Roosevelt e figuras como Greta Garbo. Participou em vários filmes, incluindo "Los Tarantos" (1963), que viria a ser o seu último.
Morreu em 1963, em Begur, na Catalunha, vítima de uma doença renal. Ainda hoje é considerada uma das figuras mais revolucionárias e poderosas do flamenco. Esta faísca foi algo que sempre fascinou Aina Alegre, coreógrafa contemporânea catalã, diretora do centro coreográfico nacional de Grenoble, em França.
Corpos feitos de fantasmas
Há corpos que não se apagam, mesmo quando já não dançam. “Fugaces”, de Aina Alegre, é um tributo vibrante e indisciplinado à presença incandescente de Carmen Amaya – não como figura congelada na memória do flamenco, mas como força viva, convocada aqui numa reinvenção contemporânea que recusa o mimetismo e aposta antes na invocação. O espetáculo é tudo menos literal. Alegre não recria Carmen; revolve-lhe os gestos, escava-lhe o ímpeto, escuta-lhe o rastro e propõe um corpo plural, pulsante, em constante combustão.
Desde o primeiro instante, percebe-se que a dança aqui não se esgota na coreografia: ela habita a respiração, o atrito, o chão. A presença da areia – trazida do Somorrostro de Barcelona, onde Carmen nasceu e viveu – não é mero elemento cenográfico. É som, é memória, e resistência. Cada passo levanta pó, cada gesto cava tempo. O som dessa areia, amplificado e manipulado, transforma-se num corpo sonoro que dança connosco. Há momentos em que já não sabemos se ouvimos os intérpretes ou a própria Carmen, a bater os pés noutra dimensão.
O uso da areia é também um convite à escuta: uma matéria que regista, que denuncia o peso, a velocidade, a hesitação. E é aí que se percebe o requinte do trabalho de Alegre: ao dar protagonismo ao chão, ao som que nasce do corpo em contacto direto com a terra, ela devolve-nos a Carmen essencial, indomável, híbrida.
O movimento dos intérpretes não replica o flamenco, mas evoca-lhe o espírito com recurso a voltas quebradas, deslocações bruscas, torções inesperadas que interrompem qualquer leitura linear do gesto. É um corpo que se desorganiza, que se desfaz para voltar a compor-se num outro idioma – um que carrega o flamenco, sim, mas também o contemporâneo, o ritual, a urgência. A ideia de homenagem transforma-se em gesto de contágio: Carmen dança neles sem ser possuída, contamina sem ser contida.
Aina Alegre propõe uma coreografia do eco – não um eco vazio, mas um eco espesso, que reverbera no tempo e nos corpos. É um espetáculo que não quer fixar a imagem da bailaora, mas libertá-la do peso monumental da lenda. Há humor, há raiva, há vibração – e sobretudo, há liberdade. E uma maravilhosa bailarina que toca trompete. Uma liberdade rude, suada, sem adornos. O flamenco aparece aqui como uma faísca e não como um molde; como uma combustão interna que transforma tudo o que toca.
No fim, o palco é um deserto pisado, uma pele impressa de passado, um terreno onde a memória se dança e se desfaz. “Fugaces” é menos sobre a duração do gesto e mais sobre a sua intensidade. Aina Alegre não nos oferece uma Carmen Amaya de postal ilustrado – dá-nos o seu rasto, o seu peso, a sua fúria. E isso é infinitamente mais vivo do que algumas das propostas que se têm feito nos últimos anos sobre a figura de Carmen Amaya, como a que foi proposta por Olga Pericet.

