Bruno Gascon fala ao JN sobre o seu novo filme, “Pátria”, já nos cinemas.
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Depois de “Carga”, sobre o tráfico humano, e “Sombra”, vagamente baseado no desaparecimento de Rui Pedro, Bruno Gascon assina a terceira longa-metragem, com “Pátria”, em estreia em sala, com Tomás Alves e Rafael Morais nos protagonistas. Num futuro mais ou menos próximo e numa sociedade totalitária, um homem tenta sobreviver apesar de acossado por um violento grupo extremista. Produzido como os anteriores pela Caracol Protagonista, que o realizador partilha com a produtora Joana Domingues, o filme reclama, uma vez mais, um lugar à parte no cinema português e aguarda o seu público. Entretanto, o realizador falou ao JN.
Depois de dois filmes mais intimistas, o que o levou a fazer um filme tão claramente político?
Acima de tudo foi o estado das coisas. Quando escrevi este filme, vivíamos a realidade do Trump e do Bolsonaro. Achei que era importante lançar um alerta às pessoas, um alerta entre aspas. É importante percebermos o que está a acontecer e os erros que cometemos no passado, para não voltarmos ao mesmo.
O filme, apesar de distópico, é um olhar sobre o que somos hoje?
Vivemos numa sociedade cada vez mais individualista, cada vez mais fechados sobre nós próprios. As pessoas têm pouco tempo para conviver umas com as outras, por causa da tecnologia e da falta de tempo. Se queremos evoluir em sociedade, temos de começar a dar direitos a todos e a respeitar o próximo. Isso está a perder-se cada vez mais. Estamos a caminhar para uma zona que nos vai levar a uma espécie de regime ditatorial.
Estes expatriados do filme são quem?
São os escravos do regime, os que não têm pátria. É alguém que o regime vê como um obstáculo, porque o questionam, devido ao trabalho forçado que são obrigados a fazer.
O grupo extremista é baseado em algo que vê à sua volta?
É baseado em alguns grupos extremistas que fomos vendo ao longo do tempo, como os hooligans de Inglaterra, os grupos nazis. Fui estudar esse lado histórico e percebi que quando um regime totalitário é criado, existem grupos como este que fazem o seu trabalho sujo. São pessoas a controlar pessoas, que o regime utiliza, devido a problemas sociais ou a traumas que tenham, para que controlem outras pessoas.
Até que ponto o filme pode levantar a discussão sobre os problemas que aborda?
Gostava que levantasse a questão de perceber para onde é que estamos a ir como sociedade. Não é através das redes sociais ou de chavões criados por quem está no poder que os problemas se vão resolver. É através do diálogo. Há um lado violento no filme, mas não acho que a violência seja a solução. É fácil dizer às pessoas que um problema existe, mas se não se debate como é que se vai resolvê-lo? É importante parar e pensar para onde é que queremos caminhar.
O filme foi produzido já com uma guerra a decorrer e agora estamos à beira de outra ou na continuação violenta de outra…
Quando escrevi o filme era atual. Passados dois anos, vai estrear e continua a ser atual. Infelizmente, parece que nunca vai perder a atualidade. Estamos a cometer exatamente os mesmos erros do passado. Falta diálogo e compreensão. As pessoas estão de tal forma embrenhadas nos seus próprios problemas que se esquecem de ver o que se passa à sua volta. Quando o problema não nos bate à porta, não é um problema nosso. E é errado, porque de qualquer maneira vai sempre afetar as nossas vidas.
Pessoalmente, define-se como uma pessoa pessimista ou otimista?
Eu sou uma pessoa pessimista por natureza. Mas gosto de ter sempre um lado de esperança. É um lado que eu não perco. É importante continuar a ter essa esperança, caso contrário é como atirar a toalha ao chão. Por muito pouca esperança que exista, temos de continuar agarrados a ela.
Como é que trabalhou com os atores o lado de violência que o filme contém?
A violência do filme não é apenas física, também é psicológica. Toda a essência das personagens é muito trabalhada com os atores, para que pudéssemos compreender o seu presente. O passado condiciona sempre as personagens. É esse lado psicológico que torna o filme tão realista, apesar de ser uma distopia. Gosto de lhe chamar uma distopia realista.
De qualquer forma deve ter havido um forte trabalho de coreografia das cenas de violência física.
Não foi fácil fazer aquelas sequências. Houve uma série de coreografias que fomos trabalhando. Demorámos duas a três noites a fazê-las. Eu pretendia que fosse uma coisa mais crua e menos coreografada. Tivemos que aprender a coreografia primeiro, para depois a desaprender, para parecer o mais realista possível.
Os locais de filmagem são um dos aspetos mais fortes do filme. Onde é que filmou e porque escolheu aquele tipo de locais?
O filme foi rodado em Barcelos. Tento sempre adaptar os locais que vou vendo que melhor sirvam a história. Fiz muitas visitas a Barcelos pra tentar perceber quais eram os locais que havia para contar esta história. Queria tentar tirar aquela contemporaneidade que normalmente é difícil de tirar numa cidade. Foi um trabalho complexo, mas passámos essa ideia que é uma realidade que não existe, que não é contemporânea.
Quando olhamos para o futuro temos a tendência de ver algo mais futurista, mas aqui é o contrário…
Era essa ideia. Quando existe uma ditadura, o conceito de evolução é um bocadinho travado. Não existe progresso, parece que paramos no tempo. Foi essa a ideia que quis dar, que as coisas ficam mais degradadas, as pessoas têm menos direitos e o processo de tecnologia pára no tempo. Se vivermos numa realidade daquelas, não vamos evoluir. E muitas vezes vamos regredir. Em direitos, em poder, em todos os aspetos da nossa vida.
O filme tem uma dedicatória muito especial…
É uma homenagem ao meu pai. O filme foi rodado no confinamento. Para aí no quarto dia de rodagem apanhou o covid e acabou por morrer durante a rodagem. É evidente que isso condicionou muito o meu lado psicológico. Estava todos os dias em comunicação com ele. O meu pai era muito ligado ao associativismo, era o organizador da Corrida da Liberdade, que se faz todos os anos no 25 de Abril. Desde criança que fui habituado a ouvir que é importante lutar pela liberdade, que não era um dado adquirido.
Onde é que o Bruno Gascon e a Caracol se situam, no quadro do cinema português?
Tentamos fazer o nosso caminho sem pisar ninguém. Tentamos criar uma forma de fazer cinema em Portugal. Criar histórias que tenham um lado interventivo, podemos dizer assim. Falamos de temas de que a sociedade não quer falar. Achamos que é importante falar sobre eles para podermos evoluir enquanto sociedade. E não desistir. É muito difícil fazer cinema em Portugal, mas nós vamos cá estar, a tentar fazer o nosso caminho.