“Gaza, meu amor”, dos irmãos Tarzam e Arab Nasser, mostra como crescem flores no cimento.
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“A que horas está previsto hoje o corte de luz?”, pergunta uma personagem. “Para a cortarem têm primeiro de a ligar”, responde outra, e ambas se riem. Isto era Gaza antes do ataque do Hamas a 7 de outubro de 2023. Antes da resposta esmagadora do Governo de Israel. Antes de Trump, antes da “riviera”. Isto era a Gaza precária, amarrada, prestes a explodir. Um território sem horizonte. Exceto para Issa (Salim Daw), que encontrou em Siham (Hiam Abass) toda a paisagem que precisava.
Estreada no Festival de Veneza, em 2020, “Gaza, meu amor”, dos gémeos Tarzan e Arab Nasser, é uma co-produção palestiniana, francesa, alemã e portuguesa e foi parcialmente filmada no Algarve. Inspira-se numa curiosa história ocorrida em Gaza, em 2014: um pescador que apanhou nas redes uma estátua grega de Apolo, divindade da beleza, da harmonia, da razão. O Hamas confiscou-a imediatamente e procurou vendê-la. O destino da estátua é desconhecido. Diz-se que terá sido destruída num raide aéreo.
É um símbolo do extraordinário, do improvável, no filme dos Nasser. Issa, pescador com mais de 60 anos, começa a fazer exercício e a perfumar-se quando descobre Siham, uma costureira viúva um pouco mais nova. À sua volta, todos planeiam abandonar Gaza. Há um diálogo premonitório, em que uma das personagens diz que a situação vai ser ainda “muito pior”. As televisões vão dando nota do difícil contexto político. E as dificuldades são expostas em todos os momentos do quotidiano. Mas Issa decidiu que quer casar.
É na dança hesitante da sua aproximação a Siham e no imbróglio gerado pela descoberta da estátua, que leva Issa a ser preso duas vezes pelo Hamas – uma delas por ter partido o pénis de Apolo e o ter escondido –, que evolui este filme agridoce, filmado com precisão e economia, que nos mostra que há mesmo flores a crescerem no cimento.