Uma das atrizes mais assombrosas que o cinema e o teatro jamais conheceram, responsável por interpretações inesquecíveis como as de “Noite de Estreia” ou “Uma Mulher Sob Influência”, duas das sete vezes em que foi dirigida por John Cassavetes, com quem esteve casada, Gena Rowlands deixou-nos esta quarta-feira.
Corpo do artigo
Tinha 94 anos e sofria há cinco de Alzheimer, revelou o filho, o realizador Nick Cassavetes.
Muitos dirão que desapareceu a musa de John Cassavetes. No entanto, e ao contrário das relações de Marlene Dietrich com Josef von Sternberg ou mesmo de Giulieta Masina com o marido, Federico Fellini, a obra de Cassavetes, durante todo o período em que viveram juntos, é indissociável da contribuição artística permanente, 24 horas por dia, sete dias por semana, de Gena Rowlands.
Muito mais do que atriz, Gena foi também a criadora dos outros filmes que fizeram juntos: “A Child is Waiting”, “Rostos”, “Tempo de Amar”, “Glória” – refeito anos mais tarde com Sharon Stone na protagonista -, “Amantes”. Muitos destes filmes, como os já citados “Uma Mulher Sob Influência” e “Noite de Estreia”, são também reflexo do enorme choque de personalidades entre Rowlands e Cassavetes, de um casamento longo mas por vezes difícil mas, sobretudo, de personagens que vinham lá muito de dentro dela, com as suas dores, os seus êxtases, os seus sacrifícios.
Não admira pois que um dia Gena Rowlands tenha dito que, como artista, amava John Cassavetes, mas como marido, o detestava. “Tínhamos uma grande dose de liberdade quando John apenas representava, viajávamos e divertíamo-nos muito”, referindo-se aos três filmes que também fizeram juntos, mas apenas como atores. E concluía: “Penso que as pessoas não têm o juízo todo quando decidem realizar um filme, escreve-se durante três meses, monta-se durante seis. O John é a pessoa mais terrivelmente perfeccionista em relação ao que quer.”
Há, no entanto, relatos de uma enorme comunhão artística entre o casal e a “família” de atores que reuniram. Com algumas das rodagens a terem lugar na sua própria casa, há quem fale de discussões artísticas na sala entre John, Peter Falk, Ben Gazzara e Seymour Cassel, com Gena na cozinha a preparar spaghetti para toda a gente. Cigarros e alcool também não faltariam. John Cassavetes faleceu em 1989, de cirrose.
John e Gena tinham-se conhecido em finais de 1953, estudantes na American Academy e quatro meses depois estavam casados. Cassavetes não resistiu ao charme daquela loura de voz inconfundível, amante como ele de filmes franceses e italianos.
Gena Rowlands nascera a 19 de junho de 1930, em Madison, no Wisconsin, filha de pai banqueiro e Senador e de mãe pintora. Mas, fã de Bette Davis e Marlene Dietrich, troca os estudos na sua terra natal e parte para Nova Iorque, para estudar representação e onde começa a aparecer nos palcos.
O encontro com John Cassavetes foi, como se referiu, fulgurante, e Gena Rowlands não hesita em recusar mais ofertas de uma Hollywood onde já começara a aparecer para se instalar com o jovem marido em Nova Iorque. Enquanto Gena se dedicava mais ao teatro, estando 18 meses em cena com uma peça de Paddy Chayefsky, ao lado de Edward G. Robinson, Cassavetes, revolucionava o cinema americano, vindo para a rua com uma câmara ligeira e realizando obras hoje capitais na história do cinema independente, como “Shadows” e “Too Late Blues”, muito influenciados pelos ambientes e pela musicalidade do jazz.
Os filmes da dupla viriam a fazer parte indelével da cultura da segunda metade do século XX. “Rostos” foi nomeado para três Oscars, “Uma Mulher Sob Influência”, que Gena não aceitou fazer no palco com receio de não aguentar todas as noites a intensidade psicológica daquela mulher vítima de doença mental, deu-lhe uma primeira nomeação ao Óscar, o mesmo acontecendo ao marido, enquanto realizador, “Noite de Estreia” confere a Gena o prémio de interpretação em Berlim, “Glória” é Leão de Ouro em Veneza e dá a Gena uma segunda nomeação aos Óscars, “Amantes” conquista o Urso de Ouro de Berlim!
Naturalmente, a obra de Gena Rowlands como atriz, que se espalha por mais de uma centena de filmes e trabalhos para televisão, onde pôde ser vista em episódios de “Alfred Hitchcock Presents”, “Bonanza” ou “Dr. Kildare”, entre outros títulos míticos da época de ouro da televisão americana, não se esgotou com a colaboração artística com o marido. Pouco antes da morte de Cassavetes filmara “Uma Outra Mulher”, com Woody Allen, oferecendo pouco depois o seu trabalho a outro icónico nova-iorquino, Jim Jarmush, em “Noite na Terra”.
As aparições de Gena Rowlands começam a rarear. Trabalha com o filho Nick em “A Mulher das Nossas Vidas”, adaptação de um guião original de John Cassavetes, e “O Diário da Nossa Paixão”, e com a filha Zoe R. Cassavetes, em “Uma Americana em Paris”, a que se juntam alguns papéis secundários que vão surgindo para uma mulher da sua idade num cinema que cada vez mais as vai esquecendo.
A outra filha de Gena e John, Xan Cassavetes, começou a sua carreira mais virada para o filme de terror. Gena Rowlands casou de novo em 2012, com um homem de negócios e a Academia de Hollywood lembra-se finalmente dela em 2015, atribuindo-lhe um Oscar honorário. Para várias gerações de cinéfilos, será sempre uma das maiores.