Decano dos jornalistas do JN sopra 90 velas. Porto também rendido ao historiador da cidade. Lançamento de "As histórias que faltavam" não esgotam o espólio de investigação recolhido ao longo de décadas.
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Com a devida vénia, surripiamos ao escritor Álvaro Magalhães o título para celebrar o 90.º aniversário de Germano Silva. O jornalista e historiador do Porto é isso mesmo, um mecanismo cronológico, que regista as mais belas narrativas tripeiras. Pelas 90 velas, que soprará esta quarta-feira, assinale-se-lhe, também, o lançamento de mais um livro, "Porto: As histórias que faltavam".
A 13 de outubro de 1931, nasceu, em Penafiel, um portuense que, não sendo de gema, encarna como poucos o espírito granítico da Invicta. O Germano - como todos, mais entrados ou mais novos, o tratam na rua, na intimidade que dilui a deferência devida a tão ilustre nonagenário e que tão agrada ao próprio - foi transplantado para as margens do Douro com um ano de idade e não precisou da certificação do berço para se tornar num portuense tão genuíno, o que hoje é também celebrado pelos amigos, pelos "compagnons de route" do "Jornal de Notícias" e por toda a cidade.
Memória inesgotável
Ficam ainda muitas histórias do Porto para contar
E no ano em que festeja o nonagésimo aniversário, Germano Silva volta a publicar mais um livro das crónicas com que mima os leitores do JN há meio século. Em "Porto: As histórias que faltavam", este decano dos jornalistas faz uma certa emenda ao título da obra publicada pela Porto Editora e observa que "a História do Porto é inesgotável". "As pessoas que me acompanham nos passeios e que sempre esperam pelos meus livros de crónicas é que estavam sempre a pedir-me para publicar as histórias que faltavam. Daí o título", explica o autor.
Desta vez, Germano acrescenta à compilação de crónicas todo um capítulo, o primeiro do livro, inteiramente dedicado ao ano em que viu a luz, em 1931, com "algumas das mais sugestivas pequenas histórias da grande História do Porto", mais que milenar.
"O Porto e a História da cidade são mesmo inesgotáveis. É Porto dos grandes mercadores, que fizeram esta cidade, o dos negócios, das viagens para a Flandres, para a Inglaterra. Eles ouviam a traziam histórias de novos conceitos, de doutrinas, de movimentos culturais, que assimilaram, que trouxeram para cá e que perduram até aos tempos de hoje", afirma Germano Silva.
Para continuar...
Na vertigem do calendário, o nonagenário considera-se "muito gratificado" pelo reconhecimento de uma longa carreira dedicada à cidade, mas assinala que ainda não é tempo de parar e que ainda há para revelar e contar sobre a História do Porto. "Só cheguei aos 90. É apenas mais um degrau. E isto é para continuar, enquanto as pernas aguentarem e os pulmões também", diz o historiador.
O caminho reabre-se já a seguir, a decalcar as ruas e as vielas do Porto medular, que Germano Silva já percorreu vezes sem conta, em autênticas excursões da memória, sempre de interesse renovado e sempre seguidas por dezenas de admiradores.
"Enquanto tiver pernas, enquanto puder andar", insiste, a máquina do tempo há de andar por aí, a calcorrear as calçadas gastas do Porto nuclear. "Cada pedra, cada rua, cada praça, cada esquina e cada casa são testemunhos do passado, que devemos preservar", concluiu o historiador.
Casa do Infante expõe espólio do historiador
Desafiado a contar as histórias ocorridas na cidade nesse 1931, do ano em que nasceu, Germano descreve "uma cidade intimista", assim como os primórdios de um debate, o da mobilidade urbana, que, afinal, não é exclusivo das "smart cities" atuais.
Há 90 anos, a circulação no Porto já originava controvérsia. Tudo por causa dos carros de... bois! "Os comerciantes da Baixa queixavam-se à Câmara da chiadeira causada pelos eixos", conta Germano Silva.
Estas e outras histórias de 1931 estão no primeiro capítulo de "Porto - As histórias que faltavam". Ali se descreve o quotidiano tripeiro de muito alvoroço matinal, das sirenes das fábricas em meio urbano e das vendedoras ambulantes, a padeira, a leiteira, a peixeira, a hortaliceira... E o fado dos ceguinhos!
"Cantavam histórias que estivessem na ordem do dia, os crimes que vinham nos jornais. Eram como os trovadores de antigamente", conta Germano Silva. O repertório incluía a versão poética e ligeira da violência conjugal e do estoicismo feminino que já lá vai. "Elas diziam que "se ele me bate é porque gosta de mim". E cantavam: "Senhor guarda, não o prenda/Ele é bom, é meu amigo/Isto que eu tenho no rosto são dedadas de carmim/Eu pus o rouge mal posto/e ficou-me a cara assim"".
Acervo pessoal de sete décadas doado à cidade
Mais de 70 anos de buscas e de recolha de documentação relacionada com a História da cidade foi doada por Germano Silva à cidade. A coleção, constituída por livros, monografias e testemunhos manuscritos ficou à custódia da Casa do Infante, que agora tratará de divulgar a herança do jornalista. A exposição será inaugurada no próximo dia 28.
Recolhido em muitos anos de leilões, de frequência de antiquários e de exercício do jornalismo, o acervo é constituído por documentos muitos ricos, raros, únicos, até, para a boa conservação da memória do Porto: são livros, apontamentos, monografias , atas, faturas de instituições públicas, cartazes, recortes de jornais e tantos outros testemunhos históricos, alguns a remeter ao séculos XVII e outros, muitos mais, relacionados com as lutas do Porto liberal, no século XIX.
Sobra "o sentimento de partilha", para que historiadores, estudiosos ou simples curiosos possam perpetuar o Porto.
Pormenores
Honoris causa
Nos roteiros profissionais do jornalista, em busca dos tesouros mais recônditos do Porto, também se conciliou a investigação do historiador, doutor honoris causa pela Universidade do Porto.
Mapa mental
A cada rua da cidade, a cada esquina, a cada placa toponímica, uma ou mais histórias que Germano Silva conhece como poucos. Não fosse ele também membro da Comissão de Toponímia da Câmara Municipal do Porto.
Pedagogia
Com a publicação das crónicas da cidade, publicadas no JN, o jornalista também deu"sentido pedagógico" à investigação. "Para que as pessoas que vivem numa determinada rua saibam que a rua tem uma história que merece ser estimada", afirma Germano.
Uma certa forma de ser portuense
"Germano Silva é uma das pessoas que mais têm contribuído para a difusão, aprofundamento e valorização da História do Porto. Ele próprio ocupa já um lugar na História da cidade, graças ao extraordinário mérito e enorme popularidade do seu trabalho de investigação. Está entre as grandes figuras do Porto contemporâneo e a sua humildade, abnegação e paixão pela cidade representam uma certa forma de ser portuense. É não só o guardião da memória da cidade como personifica os seus valores mais profundos".
Por António S. Pereira, Reitor Universidade do Porto
Como cidadão do Porto tenho de agradecer
"O Germano tem uma importância muito significativa para o Porto e para todos os portuenses. Enquanto jornalista criou um estilo nessa grande escola que é o JN, levantou problemas da cidade, abordando não só a cultura, a história, mas também a sua dinâmica social e económica, alertando os decisores. Enquanto cidadão do Porto só tenho de agradecer-lhe. É alguém que conseguiu reunir consensos, mas não de uma forma mole, assumiu-o como imperativo cívico. Sem ele, muitas histórias da cidade teriam desaparecido"
Por António Tavares, Provedor Misericórdia do Porto
A sorte de o ler ou de o ouvir
"O Germano é o amigo generoso e disponível, mas também a minha (e nossa) máquina de viajar no passado. 'Quem viveu naquela palacete? Como era esta rua há cem anos'. E lá vamos nós em mais uma viagem no tempo, que é sempre cativante. Quem tem a sorte de o ler ou ouvir, de caminhar com ele por estas ruas, também conhece uma outra cidade, muito mais próxima do coração. Dizem que faz hoje 90 anos, e faz muito bem, mas é preciso garantir, desde já, que viverá para sempre".
Por Álvaro Magalhães, Escritor