A reaproximação popular à obra de Gil Vicente só poderá acontecer com o regresso das suas peças aos palcos novas, edições e uma reformulação do ensino . A opinião é do professor catedrático José Augusto Cardoso Bernardes, que profere nesta segunda-feira à noite no Porto uma palestra sobre a obra vicentina.
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Janeiro é o mês de Gil Vicente no Teatro Nacional São João, no Porto. Até ao próximo dia 21, a obra do genial dramaturgo está em evidência através de peças de teatro, leituras, oficinas e uma conferência. "Gil Vicente no seu tempo e no nosso tempo" é o título da palestra que o conceituado especialista vicentista José Augusto Cardoso Bernardes vai protagonizar já nesta segunda-feira, dia 15, às 21 horas, no Teatro Carlos Alberto, no Porto, com entrada livre.
Entrevistado pelo "Jornal de Notícias", o professor catedrático e e diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra defende que a reaproximação popular à obra de Gil Vicente passa por novas edições "rigorosas, sistemáticas e acessíveis" da sua obra, um regresso das suas peças aos palcos e, por fim, uma reformulação do ensino.
É frequente ouvirmos dizer que um autor clássico mantém por norma a sua atualidade intacta. No caso da obra de Gil Vicente acredita que isso faz particular sentido?
Alimentamos essa ideia, de facto. Por vezes, na Escola costumamos acentuar o caráter de quase adivinhação que distinguiria as grandes obras. Mas existe algo de demagógico nessa crença. Só em parte se pode dizer que a atualidade transita de umas épocas para as outras. O maior desafio que um artista enfrenta é o de corresponder aos desafios do seu próprio tempo. Perscrutar o mundo, identificando as grandes questões que o habitam em cada circunstância não é coisa pouca. Dou um exemplo aplicável a Gil Vicente. Um dos temas mais recorrentes nos seus autos é o da Justiça. Significa isso que Gil Vicente antecipou a importância que a Justiça viria a ter nas sociedades democráticas do século XXI? Claro que não. A Ordem defendida e proclamada por Gil Vicente no tempo de D. Manuel e de D. João III requeria uma Justiça forte e impoluta e, por isso, o dramaturgo se empenhou tanto em denunciar a venalidade dos magistrados (na sua última peça - "Floresta de enganos" - existe ainda um juiz corrompido).
Podemos hoje olhar para a Barca do Inferno onde há um Procurador e um Corregedor que vão parar ao Inferno ou ainda um Onzeneiro que enriqueceu a emprestar dinheiro a altos juros. No lugar de um e de outro poderiam estar agentes da justiça e um banqueiro do nosso tempo. Mas isso não significa que Gil Vicente tenha antecipado nenhum dos megaprocessos de hoje. Isso quer dizer apenas que, tendo vivido há quinhentos anos, o dramaturgo identificou a Justiça como base essencial para o funcionamento das sociedades humanas. Era, de facto, um dos muitos desafios do seu tempo que, desde então, nunca mais deixou de nos interpelar.
Sendo Gil Vicente, um homem tão firmemente enraizado no seu tempo, como demonstra o que escreveu, de que forma se explica o grau de interesse que a sua obra suscita, tantos séculos depois?
É preciso dizer, antes de mais, que devemos alimentar a curiosidade por épocas diferentes daquela em que vivemos. Desde logo porque o passado nunca está verdadeiramente passado. Pelo contrário: cada época cria a necessidade de uma memória que vamos mantendo e renovando. No caso de Gil Vicente, contudo, é preciso mencionar um fator especial. A sua voz vem do século XVI e os portugueses gostam (e precisam) da ampla e minuciosa "reportagem" que ele lhes oferece desse tempo mítico.
Não interessa tanto conhecer os acidentes particulares que encontram eco no teatro vicentino. É possível que o fidalgo D. Anrique ou o frade da Barca do Inferno se inspirem em modelos reais, hoje desconhecidos. Mas para além dessas referências concretas, sobressai o teatro das atitudes e dos valores. Importa a maneira de ser e de estar próprios de um período que, porventura mais do que qualquer outro, condicionou a nossa identidade. Não há dúvida: de uma maneira ou de outra, os portugueses gostam especialmente de espreitar o que se passa no primeiro terço do século XVI.
Tem apresentado esta conferência em diferentes cidades e regiões. Como tem avaliado a reação e o interesse populares pela obra vicentista?
Fazer aproximar os espectadores de hoje da arte de Gil Vicente não é fácil. Julgo mesmo que é preferível assumir que é difícil, em ambiente escolar, desde logo. O texto vicentino (o texto literário, em geral) requer esforço de leitura e de atenção para o qual os jovens não estão naturalmente disponíveis. O nosso tempo está repleto de solicitações bem mais imediatas, mesmo no plano literário e artístico. Não podendo, portanto, sustentar a ideia de acessibilidade (a linguagem dos autos pode parecer muito afastada da capacidade de reconhecimento dos alunos), resta-me tentar demonstrar que essa aproximação vale a pena. São muitos os ganhos que o espetador comum pode extrair em contacto com uma peça como a "Barca do Inferno" ou o "Auto da Alma", por exemplo. São ganhos de alteridade, quase sempre, ou seja, são ganhos de quem encontra e fica a conhecer situações, aspirações e valores diferentes daqueles que encontra no seu quotidiano. Não têm que ser tomados como exemplo mas podem ser apreciados pela diferença e isso é precioso.
Na esmagadora maioria dos casos, os portugueses conhecem Gil Vicente na Escola e quase nunca voltam a encontrá-lo. Gil Vicente é muito menos representado do que deveria ser. E isso é estranho. As companhias que correm riscos e procuram levar Gil Vicente aos palcos com honestidade e criatividade cumprem uma missão patrimonial e deveriam beneficiar de algum tipo de apoio do Estado.
Ainda assim, o reencontro com Gil Vicente acontece algumas vezes. É agora o caso concreto do Centro Dramático de Évora e da Escola da Noite (de Coimbra), companhias que têm (uma e outra) com Gil Vicente uma convivência bem sucedida, de muitos anos. Em boa hora resolveram conjugar recursos para levar a Barca do Inferno em digressão nacional.
Seja como for, é sempre desejável que haja surpresa. Um adolescente de 15 anos só muito parcialmente pode gostar e compreender Gil Vicente (e Camões). A esse propósito, atrevo-me a dizer que é muito importante que as aulas de Português não procurem ser exaustivas. Quando se lida com Arte a busca da exaustividade não é um bem. É sempre preferível deixar nos alunos margem para descobertas posteriores.
Por que sabemos tão pouco sobre a vida de Gil Vicente (e mesmo alguns desses conhecimentos serão certamente inexatos)?
Em minha opinião, o desconhecimento sobre a vida de Gil Vicente significa, antes de mais, que o dramaturgo não era uma pessoa especialmente importante. Sabemos que servia o Rei e sabemos que o fazia com uma independência que ainda hoje nos surpreende. Mas o seu estatuto social não seria muito elevado.
O século XIX não se conformou com esse desconhecimento e procurou supri-lo, recorrendo a especulações e fantasias. A mais conhecida dessas especulações é decerto aquela que faz coincidir numa só pessoa o dramaturgo que compôs e encenou cerca de 50 peças (em 35 anos) e o ourives que concebeu a célebre Custódia de Belém, entre outras peças de execução particularmente exigente. Não existe nenhum indicador seguro de que essa tese seja verdadeira.
Hoje, parece ter diminuído bastante o interesse pela biografia de Gil Vicente. Até porque muito provavelmente ele teve uma vida comezinha. Não foi, pelo menos, um amador arrebatado e aventuroso como Camões.
No seu caso particular, como surgiu a paixão pela obra de Gil Vicente?
Conjugaram-se dois fatores: queria trabalhar na literatura do século XVI e gosto simultaneamente de literatura e de teatro. A escolha de Gil Vicente surgiu assim de forma natural. Havia uma dificuldade maior, devo reconhecê-lo. Logo a seguir a Camões, Gil Vicente é, ainda hoje, o autor que mais bibliografia crítica inspirou: em Portugal sobretudo; mas também em Espanha, Brasil, França, Reino Unido e Estados Unidos. Dizer alguma coisa de novo (e a inovação é necessária quando se trata de investigação académica) implicava pois um longo e cuidado exame do que se tinha já escrito.
Em contraponto, havia e há um estímulo muito forte. A obra de Gil Vicente é vastíssima e diversa. Nessa medida, o seu estudo nunca pode dar-se por terminado. As perguntas que hoje temos para fazer à Compilação são novas porque, em boa parte, a nossa curiosidade se renova em cada época.
Tem em preparação mais alguma obra ou estudo sobre Gil Vicente?
Juntamente com o meu colega de Lisboa José Camões (excelente vicentista e responsável pela melhor e mais recente edição da obra completa do dramaturgo) tive o gosto de coordenar um Compêndio de Gil Vicente, que deverá ser publicado ainda este ano. Trata-se de uma obra extensa e abrangente, que conta com a participação de cerca de duas dezenas de investigadores de diferentes nacionalidades.
Para 2019, é nossa intenção publicar uma edição conjunta das três Barcas. Seria uma excelente forma de assinalar os cinco séculos de representação desse conjunto peças, que Gil Vicente fez representar sequencialmente na corte de D. Manuel, entre 1517 e 1519.
Qual o aspeto da obra de Gil Vicente sobre o qual mais se nota a falta de estudos?
Como dizia, a obra de Gil Vicente nunca pode ser dada por satisfatoriamente estudada. Durante muitos anos, predominou largamente a perspetiva literária. Só muito recentemente os estudos teatrais começaram a aproximar-se do autor. São ainda muito incipientes os estudos de que dispomos sobre a vertente cénica e performativa que pode ser reconstituída a partir dos textos e de outros elementos de pesquisa.
Mas também se sente a falta de estudos em domínios específicos como a afinidade de Gil Vicente com a tradição do teatro europeu, a substância teológica que se reveste de importância tão marcante nas moralidades, por exemplo.
É lícito considerar Gil Vicente um autor genuinamente português ou será acima de tudo ibérico?
Gil Vicente é um escritor e um homem de teatro português, naturalmente. Mas essa caracterização não deve ser entendida em sentido restrito. Ele é também um grande intérprete da tradição lírica e teatral da Península Ibérica, estando mesmo, de algum modo, na génese da fantástica produção que assinala o teatro barroco espanhol (Lope de Vega e Calderón de la Barca).
Mas podemos ir ainda mais longe sem exageros. Gil Vicente é, por direito próprio, um nome destacado da história do teatro ocidental. Situa-se na linha dos modelos medievais e é, nesse plano, o dramaturgo mais coeso que essa tradição produziu.
O que poderia ser feito para que a obra de Gil Vicente chegasse a ainda mais leitores?
Distingo três necessidades: o ensino, as edições e os palcos. Era talvez necessário rever a forma como Gil Vicente é apresentado aos alunos do 9º ano, em primeiro lugar, promovendo a criatividade fundamentada. Sei que existem boas práticas a este respeito mas não existe maneira fácil de as divulgar.
Refiro depois a necessidade de editar Gil Vicente de forma sistemática, rigorosa e acessível (com textos bem fixados e bem anotados, sobretudo). É o que sucede em Espanha, a propósito de autores de grandeza equivalente. Por fim (mas não menos importante) é necessário assegurar a presença assídua de Gil Vicente nos palcos portugueses, em registo de qualidade artística.
Sei que falo de empreendimentos não lucrativos. Mas o Estado existe também para zelar pelo nosso património, permitindo que ele permaneça vivo e possa ser dado a conhecer às diferentes gerações.