Giulia Louise Steigerwalt fala sobre “Diva Futura: Cicciolina e a Revolução do Desejo”
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Em 1983, um jovem e visionário caçador de talentos, Riccardo Schicchi, e uma húngara naturalizada italiana de espírito muito livre, Ilona Staller, mais tarde famosa pelo nome artístico de Cicciolina, fundam a agência Diva Futura, que se especializaria no cinema porno. Moana, uma das suas descobertas, tornou-se um ícone do género, foi escritora e ativista, mas faleceria aos 33 anos. Cicciolina chegou ao Parlamento italiano. Mas Schicchi também faleceu novo, os tempos mudaram e a agência fechou. “Diva Futura: Cicciolina e a Revolução do Desejo” revela-nos esse período, com humor, sensibilidade e respeito. O filme está em exibição nas salas e é fundamental para conhecer melhor este mundo secreto da indústria porno e um período libertário que não volta mais. Estivemos a conversar com a realizadora, Giulia Louise Steigerwalt.
Quais as principais dificuldades que sentiu ao fazer um filme sobre o mundo da pornografia?
Achei que era uma história lindíssima, mas não estava à espera de tantas dificuldades. Quando andámos à procura de lugares para filmar, a escolher atores, mesmo na pós-produção com a música, deparei-me com uma espécie de muro. Bastava ouvirem a palavra porno para dizerem que não. Faz parte da grande contradição de como a sociedade deseja tanto aquelas mulheres, mas é a mesma sociedade que as condena. Falar abertamente sobre o porno é sempre um grande problema.
Falando de música, há numa das cenas finais uma canção dos Beach House que dá o tom certo ao filme.
Tinha essa canção na mente quando escrevi essa cena. Estava ansiosamente à espera que eles me dessem os direitos para a usar no filme. Quando se faz um filme sobre o porno é mais difícil. As pessoas recusam, mas algumas mudaram de opinião, quando lhes expliquei o projeto.
E como conseguiu financiar um filme com este tema?
Também foi uma grande luta, mas acabou por se conseguir. Ajudou conhecer o meu filme anterior, para perceber que filme eu queria agora fazer, mesmo se fosse sobre o porno. Mas quando começámos a filmar, ainda não estava completamente financiado. Foi um grande risco que corremos.
De onde vem o seu interesse por este tema?
Descobri na história da Diva Futura algo de muito divertido, romântico e feminista. Achei que havia alguns temas que ainda nos dizem alguma coisa. Gostei do lado humano e terno do Riccardo Schicchi. Era um tipo fantástico, muito fixe, respeitava as mulheres. A ideia do consentimento é central na história. Sempre foi contra a violência no porno e todo esse imaginário e de certa forma foi ele que o iniciou. Achei que era uma bela contradição, um tipo realmente simpático, mas sem a noção de vergonha.
Que tipo de investigação fez em torno da personagem do Riccardo Schicchi?
Coligi tantos testemunhos e entrevistas. Fiquei impressionada como ele era agradável para toda a gente. Falei com a família, com pessoas que trabalharam com ele, mesmo algumas raparigas que ajudou a sair da droga. Querer fazer uma revolução na cultura foi o grande problema dele, porque o atacaram e fizeram com que fechasse a agência. Mas fiquei fascinada pela história, e de um ponto de vista feminino era muito interessante, ainda hoje temos um grande problema com a violência de género.
O porno mudou entretanto bastante, desde aqueles tempos…
A maior parte do porno hoje em dia é violento e entra na cabeça das pessoas. Adolescentes começam a ver porno aos 12 anos e identificar estes jovens com a violência sobre as mulheres está a causar qualquer coisa na nossa sociedade. E ninguém fala disso. O Riccardo era contra. Era como um grego clássico, sem noção de vergonha, mas com uma ética. Dizia que eram amorais, e não imorais, o que faz toda a diferença.
O filme mostra-nos uma Moana que não conhecíamos, uma mulher de grande inteligência. Falou com alguém da família dela?
O marido dela contou-nos imensas histórias. Os pais já estão muito velhos, não tive oportunidade de falar com eles. Foi muito interessante perceber como ela passou os três últimos anos da vida a tentar mudar a carreira. Mas depois de se ser uma estrela do porno é assim que a sociedade nos vê e não nos permite fazer outra coisa. Ela ficou muito frustrada, muito triste. Queria ser atriz e pensava que daquela maneira estava a usar um atalho para o sucesso. Mas só se tornou um ícone depois de morrer.
E a Ilona Staller?
Não consegui falar com ela. Foi sempre muito complicado.
O Pietro Castellitto foi a sua primeira escolha para o papel de Riccardo Schicchi?
Foi a primeira escolha mas tive de esperar algum tempo para saber se podia fazer o filme porque tinha outros projetos em andamento. Foi um prazer trabalhar com ele. Ele é novo mas tem uma alma madura. Sabia que era bom ator, mas fiquei surpreendida pela positiva. Estudou a personagem, viu muitos vídeos, para perceber como mexia as mãos, como andava. A filha e o filho ficaram chocados com o filme, disseram que viram o pai deles, ficaram em lágrimas. Ele fez um trabalho notável, do ponto de vista emocional.
Este é um filme que só poderia ser feito por uma mulher, com esta humanidade e sensibilidade?
Não tenho a certeza. Todos os filmes e séries que tenho visto dedicados à indústria do porno concentram-se em outras coisas e são feitos por homens. Eu fiquei mesmo tocada pela humanidade e pela sensibilidade da história. Adorei a mentalidade feminista do Riccardo. Talvez um homem não se sentisse tão atraído pela história, porque não sente esta dificuldade da vida, Mas há homens que também são muito sensíveis.
Como é que lidou com as cenas de nudez, inevitáveis no filme?
Tentei sempre estar com as emoções das personagens. Não era a nudez que me interessava, mas a forma mais realista de colocar as personagens em cena. Os atores e as atrizes estavam nus, mas não se importaram, permaneceram sempre focados nas suas emoções.
Como é que o filme foi recebido em Itália?
Foi bem recebido em Veneza e quando estreou nas salas. Quem viu o filme emocionou-se. Fiquei surpreendida pela forma como tocou as pessoas. Mas a verdade é que não houve muita gente a ver o filme. Muitos pensaram que era um filme porno. Quem o viu ficou realmente surpreendido. Mas houve essa barreira que não estava à espera, o filme foi confundido com o seu tema e o mundo que abordava.
O filme aborda um período de liberdade, que já não existe hoje.
Quando descobri a história vi logo que era algo de impossível nos dias de hoje. Nunca poderíamos ver hoje estrelas porno convidadas para programas de televisão em horário nobre, com famílias inteiras a ver. Nunca haveria hoje uma estrela porno no Parlamento. Nem nas primeiras páginas de um jornal ou de uma revista sérios.
Tem uma explicação para este retrocesso?
Esta revolução teve algo de cultural, vinha da época do amor livre. Mas como em todas as revoluções há sempre exageros. Em Itália, num certo momento, grande parte dos filmes tinha mulheres meio despidas, tratadas como objetos. Mas eles viveram esse momento de revolução e consideraram terem sido os mais divertidos das vidas deles.