A Ministra da Cultura refuta as críticas do setor ao Estatuto dos Profissionais e defende que o novo diploma vai contribuir para fazer diminuir a precariedade. Em entrevista ao JN, Graça Fonseca afirma ainda que o regime será sustentável, mas recusa-se a avançar com um número expectável de adesões.
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Ambição do setor com pelo menos duas décadas, o Estatuto dos Profissionais da Cultura foi aprovado pelo conselho de ministros no final da semana passada. A nova foi recebida com fortes reservas pelas associações representativas dos 140 mil profissionais do setor, muito críticas do agravamento da precariedade que o diploma supostamente deveria combater. Ao "Jornal de Notícias", a ministra da Cultura, Graça Fonseca, atribui a resistência ao caráter inovador do estatuto e reforça o objetivo de que este possa inverter a falta de proteção social.
Como interpreta as reações muito desfavoráveis das estruturas representativas do setor à aprovação do Estatuto dos Profissionais da Cultura?
Quando iniciámos este trabalho, poderíamos tê-lo feito de uma forma mais clássica, no gabinete, em conjunto com técnicos e advogados. Teria sido decerto um regime jurídico muito bem feito, mas sem a participação das entidades mais próximas, que estão no terreno. Tenho anos suficientes de serviço público para saber que as reformas feitas de forma participada e em diálogo têm sempre mais-valias, embora também alguns riscos. Constituímos um grupo de trabalho que se reuniu durante muitos meses. Ao longo de um ano fizemos 80 reuniões com 30 entidades. Todos os processos legislativos têm um tempo de discussão...
Acha que esses debates tiveram a duração ideal?
Sempre dissemos que esse tempo terminava com a aprovação da primeira versão do estatuto, o que aconteceu em abril. Depois abriu-se um processo de consulta pública, que durou até ao verão. Recebemos 70 contributos, muitos dos quais de entidades que fazem parte do grupo de trabalho. Finalizado esse processo, tivemos mesmo que aproveitar a versão definitiva, porque, embora seja uma reforma participada, não deixa de ser um processo legislativo.
Sinalizaram o final das reuniões? As associações queixam-se de não terem voltado a ser contactadas depois das reuniões iniciais...
Vamos fazer uma reunião com essas entidades nos próximos dias. O que lhes dissemos foi que nos voltaríamos a reunir quando a versão final estivesse pronta.
Quais são, afinal, as diferenças fundamentais entre o modelo agora aprovado e a primeira versão apresentada em abril?
Destaco duas particularmente importantes. A subida do montante mínimo de apoio para um IAS (Indexante de Apoios Sociais), em vez da metade que estava prevista no início, e o tempo que um trabalhador da Cultura tem que estar sem trabalhar para poder solicitar o subsídio. A primeira versão era de três meses e passou para um mês. Estes dois exemplos são a prova de que ouvimos sempre as associações.
Ficou surpreendida com a reação tão negativa ao diploma por parte das associações?
Não sou analista. Não me compete fazer análises. Cada um tem o seu papel.
Refuta a ideia de que o estatuto vem agravar a precariedade?
Sim. Tal como o conselho de ministros, acredito que o que foi aprovado é muito importante para ir mudando a realidade que enfrentamos há demasiados anos. Não descuremos o impacto que estamos a criar com a proteção social. O pior contributo que poderíamos dar para o futuro de muitas pessoas, sobretudo as novas gerações, é desvalorizar o que isso significa. Estamos a dizer a quem trabalha na Cultura é que, nos períodos de inatividade, têm uma rede de segurança, aconteça o que acontecer. Isso faz toda a diferença na forma como se exerce o trabalho.
As contra-ordenações e as novas taxas contributivas previstas serão suficientes para combater a precariedade?
O que fizemos foi criar mecanismos legais para moldar a realidade que existe hoje em dia. Há pelo menos 30 anos que se travam duas grandes lutas: a da proteção social e o combate aos falsos recibos verdes. Esta luta não pode ser desvalorizada. Não nos esqueçamos que, durante a pandemia, houve demasiadas pessoas que tinham direito, no máximo, a 50 euros. O que estamos a dizer com este regime é que essas pessoas vão passar a ter direito a, pelo menos, 438 euros, até um máximo de 1097 euros.
Uma taxa de 5.1% pela emissão de recibos verdes consegue dissuadir as empresas de insistirem nas mesmas práticas?
O diploma tem instrumentos suficientes para combater os falsos recibos verdes e dar mais estabilidade nas relações laborais. Reforçámos a fiscalização, assim como as coimas, e alterámos a presunção da existência de um contrato de trabalho. Estamos convencidos que existem suficientes mecanismos jurídicos neste diploma para criar um impacto na realidade sociológica. A realidade vai mudando e nós vamos procurando acompanhar essas mudanças. Quando criamos uma comissão de acompanhamento durante dois anos e dizemos que ao fim desse tempo deve haver uma avaliação...
Mas essa comissão vai ter capacidade de fiscalizar as situações irregulares?
A comissão não fiscaliza. Para isso existe a Autoridade para as Condições do Trabalho e o IGAC. A comissão é exatamente o que temos hoje em dia. O que estamos a dizer é que, da mesma maneira como construímos as reforma com estas entidades, elas também terão assento numa comissão que se vai reunir regularmente para monitorizar a implementação da legislação. Queremos perceber como está a ajustar-se à realidade. Penso que é uma prática adequada, porque não há precedente histórico em Portugal. Não há um antes e um depois para comparar. Acima de tudo, espero que as milhares de pessoas às quais o estatuto se dirige possam beneficiar dele. O potencial está ali. A Europa está a discutir o mesmo tema neste momento, procurando saber como é possível melhorar a proteção social dos chamados falsos recibos verdes.
A área da Cultura não é demasiado heterogénea para que as mesmas regras vigorem para todos? Por exemplo, um artista visual terá muito mais dificuldades para cumprir os requisitos de acesso ao apoio do que um técnico de luzes.
Não. Só a realidade nos vai demonstrar como funciona. O que fizemos neste regime foi a conversão do valor do recibo emitido em fatura em dias para efeitos de cumprir o prazo de garantia para acesso ao subsídio de suspensão de atividade. Quando um artista plástico passa um recibo sabemos que isso representa um momento no tempo, mas há um trabalho prévio de preparação. O regime diz que esse trabalho tem que ser valorizado para efeitos de acesso ao subsídio.
Quantos recibos é que o artista visual terá que emitir para ter acesso?
Pode ser só um. Se for de um determinado valor, pode até ter cumprido os 180 dias para o prazo de garantia. Com esta medida, estamos precisamente a responder à heterogeneidade da área.
De onde vem a verba para pagar aos artistas que acedam ao subsídio?
A medida não é orçamental. Estamos a criar um regime contributivo, em que as pessoas que contribuam para o seu funcionamento são as que irão beneficiar. O sistema tem um fundo com um conjunto de fontes de financiamento, como as contribuições ou as coimas.
No deve e haver, acredita que será sustentável?
Pelos cálculos feitos, sim. É um trabalho muito técnico que procurou essa sustentabilidade, entre as contribuições e os compromissos. Sabemos que nos primeiros anos teremos que alocar verbas ao fundo para que tenha dotação financeira.
Tem alguma expectativa sobre o número de registos de inscrições que podem ser feitas?
Segundo o INE, há 140 mil pessoas a trabalhar na área. O que pretendemos é que haja cada vez mais profissionais efetivos que beneficiem do subsídio de desemprego. Vamos ver a evolução. Não existe histórico. O que temos são previsões setoriais de crescimento.
Há um valor mínimo abaixo do qual a adesão seria um fracasso?
Não. Gostaria que as pessoas que passaram por momentos difíceis nos últimos dois não voltem a enfrentar esses problemas. Temos que trabalhar em conjunto para que as carreiras contributivas sejam mais longas e estáveis. Precisamos que as pessoas da Cultura entrem no regime da Segurança Social e aí permaneçam. Queremos carreiras contributivas mais longas.
Houve alguma falha no diálogo?
Não é por haver críticas que deixamos de fazer o nosso trabalho. Poderíamos ter escolhido outra via, não assente no diálogo. A lei só nos obrigava a fazer consulta pública depois da aprovação e não o fizemos. Cumprimos um conjunto longo de etapas. Ninguém pode negar isso. O que o conselho de ministros decidiu foi incorporar as principais reivindicações que ao longo da consulta pública fomos escutando das entidades.
Mais do que o combate à precariedade, a grande mais valia do diploma é a proteção social que confere?
As duas dimensões são importantes e estão interligadas.
Mas o combate à precariedade inclui uma margem que depende mais das empresas do que de quem legisla.
Temos que atuar nas duas dimensões com realismo. A parte de mim que é socióloga diz que a realidade vai mudando de acordo com os mecanismos que vão sendo introduzidos. Enquanto a realidade não evolui tão rapidamente como gostaríamos, deixamos tudo na mesma ou criamos condições para que as pessoas não fiquem novamente desprotegidas?
É por este ser um instrumento novo que a adaptação pode ser mais longa do que o desejável?
Admito. Por isso é que estabelecemos um período de dois anos. Estamos a criar um regime que é muito diferente do que existe hoje em dia e tem um conjunto de pressupostos que não existem. Sabemos que existe uma realidade de carreiras contributivas curtas que queremos combater, o que contribui para um nível de proteção de Segurança Social muito baixo neste setor. É assim em vários países. Por isso é que a União Europeia tem debatido o tema. Estou convencida de que, com estes instrumentos, as pessoas possam sentir a mais valia de estarem a contribuir e manterem-se no sistema.
Tinha ainda um horizonte temporal longo até à aprovação. O estatuto europeu só entra em vigor em 2023. Por que não aguardaram mais tempo?
O nosso calendário sempre foi muito claro. A partir de um determinado momento não poderíamos prolongar mais.
Considera a aprovação deste estatuto a medida mais estruturante dos seus três anos enquanto ministra da Cultura?
Fazer serviço público só tem uma missão: transformar a realidade em algo um pouco melhor do que aquela que recebemos. Se já sentíamos a necessidade de aprovação de um estatuto específico para quem trabalha no setor, a partir de 2020 essa lacuna ainda se acentuou mais. É algo que não posso ignorar. Gostava de evitar que alguém ficasse numa situação dramática semelhante. Essa segurança que o estatuto proporciona, combatendo os falsos recibos verdes e dando maior proteção social, faz com que o diploma seja um marco importante na vida de muitas pessoas, o que naturalmente me sensibiliza.