Israel Galván, um dos coreógrafos e bailarinos mais inovadores do flamenco contemporâneo, encerrou no sábado o GUIdance 2025 com "A sagração da primavera", uma reinterpretação profundamente pessoal do balé icónico de Igor Stravinsky.
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A obra originalmente concebida para o Ballets Russes de Sergei Diaghilev e estreada em 1913, com coreografia de Vaslav Nijinsky, revolucionou a dança com o seu ritmo irregular, dissonâncias sonoras e uma narrativa de sacrifício ritual. Israel Galván, ao traduzir esse clássico de Stravinsky para a linguagem flamenca, esbate fronteiras entre tradição e vanguarda, desafiando convenções do género e expandindo os seus limites expressivos.
Apropriação flamenca de um clássico moderno
"A sagração da primavera", inspirada em rituais pagãos da Rússia, destaca-se pela sua força rítmica e visceralidade. Galván, 51 anos, mestre da desconstrução flamenca, apropria-se dessa energia primitiva para criar um espetáculo que mantém a essência percussiva e ritualística, mas no sapateado e na gestualidade flamenca. Diferentemente de outras versões coreográficas que exploram o coletivo, Galván apresenta um solo – em que interpreta tanto a comunidade como a vítima sacrificada.
Desde o início, percebe-se um diálogo entre o corpo e o som: os sapateados substituem as percussões orquestrais, fragmentando e reconfigurando a partitura. O bailarino usa diferentes plataformas como instrumento, desde colchões insufláveis, caixas de areia ou metal, transformando cada golpe, uns descalço, outras em sapatos de flamenco de notas vivas, intercalado com pausas que aumentam a tensão rítmica.
Essa abordagem percussiva, nem sempre agradável para quem escuta, reforça a dimensão tribal e primitiva da peça. Mas, ao mesmo tempo, acentua a individualidade do intérprete, como se Galván fosse um xamã moderno canalizando forças ancestrais.
Tudo sempre muito bem acompanhado por dois pianistas: Daria van den Bercken e Gerard Bouwhuis. Nota de destaque para o GUIdance 2025: os espetáculos de flamenco agregam também concertos, já que a música é invariavelmente interpretada ao vivo.
A fisicalidade extrema e a linguagem corporal
Israel Galván é conhecido pelo seu domínio técnico e por uma fisicalidade que desafia os limites do corpo flamenco tradicional. Em "La consagración de la primavera", amplia esse vocabulário: com movimentos quebrados, ângulos inesperados, desequilíbrios calculados e um uso radical das mãos e dos braços que conferem à sua dança uma qualidade quase abstrata.
Há momentos em que Galván se move como um animal acuado, outras vezes parece apenas uma criança de cinco anos que foi ao parque de diversões, alternando entre explosões de energia e silêncios tensos.
A sua releitura da obra enfatiza a violência e o sacrifício, mas de um modo não literal - não interpreta uma vítima explícita; assume a condição de corpo em convulsão, de matéria em metamorfose. A abordagem evoca tanto Nijinsky quanto os rituais flamencos do duende, onde a dança é transcendental.
O espetáculo pode ser lido como uma metáfora do próprio flamenco contemporâneo: uma arte que luta contra seus próprios limites, que se reinventa através do risco e da experimentação. Galván, como Nijinsky no seu tempo, desafia as convenções da dança e convida o público a uma experiência sensorial e emocional intensa.
Com a sua abordagem visceral e inovadora, reafirma-se como um dos artistas mais radicais da dança contemporânea, provando que o flamenco, longe de estar preso às raízes, pode dialogar com a modernidade de forma feroz.
Para rematar o espetáculo, de flor e chapéu de toureiro na cabeça, leque de plumas na mão, os pianistas abandonam Stravinsky para tocarem as míticas "Sevillanas del siglo XVIII", de Federíco García Lorca: ¡Viva Sevilla! ¡Viva Triana! ¡Vivan los trianeros, los de Triana!" . E pela primeira vez Galván desfaz a personagem, executa uns passos de sevilhana e expõe um esgar de sorriso de malandrice. O Centro Cultural Vila Flor, auditório central do GUIdance, lotado e de pé, obriga-os a agradecer quatro vezes. Não poderia existir melhor fecho para um festival de dança contemporânea.