João Pedro Vaz encena a obra derradeira de Gil Vicente.
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"Se queres matar um sensato amarra-lhe um néscio ao pé." A frase, dita no prólogo do espetáculo, tem correspondência física: um Filósofo surge em cena com um Parvo atado ao pé. Preço a pagar pela ousadia e clarividência, doravante o pensador será silenciado pelo imbecil. Nesta cena vê João Pedro Vaz a dimensão "crepuscular" de "Floresta dos enganos", derradeira obra de Gil Vicente, apresentada ao Rei D. João III, em Évora, 1536. "O filósofo é um decalque direto da sua experiência", diz o encenador. Um temor sobre a futura receção da sua obra por "ignorantes maliciosos", acrescenta José Augusto Cardoso Bernardes no texto de apresentação
Convidado pelo Teatro São João - que produz o espetáculo e empresta a sua companhia (quase) residente - a trabalhar Gil Vicente, João Pedro Vaz lembrou-se logo de "Floresta de enganos". "Porque a floresta é um espaço metafórico da própria ideia de teatro. É um lugar escuro e misterioso, onde em muitas peças há enganos, trocas, resolução de tramas. Quis fazer uma espécie de "Sonho de uma noite de verão" vicentina [a peça de Shakespeare é das mais famosas a utilizar a floresta como principal cenário]."
A montagem acompanha várias situações de engano: do mercador que é vigarizado por um escudeiro ao próprio Cupido, que é vítima de um embuste amoroso. E no facto de dois habituais enganadores serem eles próprios embarretados, encontra José Augusto Cardoso Bernardes uma moral: "ninguém está imune e o logro pode surgir de onde menos se espera." Assumindo o protagonismo, como verdadeira "máquina de cena", a floresta materializa-se num jogo de cortinas verdes e com a presença de vários mascarados que personificam animais e figuras mitológicas, alguns retirados de iluminuras da época. São figuras inventadas pelo encenador, que quis preencher a floresta, e distinguem-se pela agitação contínua, transmitindo a ideia de uma "cena a tremer".
No caráter algo inacabado e compósito do texto, o encenador vislumbra a transição entre o teatro medieval e renascentista, época em que se recuperam as comédias clássicas, que dão conta da evolução das personagens.
Floresta de enganos
Teatro Nacional São João, Porto
Até 3 de abril