
A dimensão autobiográfica de Haruki Murakami, de 75 anos, tem ganho terreno na produção literária do autor japonês.
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Escritor japonês Haruki Murakami partilha memórias soltas no novo livro “Romancista por vocação”, que é também um guia de escrita.
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Numa tarde soalheira de 1978, um ainda jovem Haruki Murakami assistia descontraidamente a um jogo de basebol da sua equipa de eleição, quando, no meio da típica agitação popular de um estádio, foi acometido por uma epifania. “Nesse momento, sem fundamento e de modo incoerente, veio-me à cabeça um pensamento: ‘Ora aí está! Talvez eu possa escrever um romance”, explica o mais bem sucedido autor japonês do nosso tempo, na altura um modesto empresário que lutava por manter aberto o seu minúsculo clube de jazz num obscuro bairro de Tóquio.
O episódio de contornos fantásticos, que integra o capítulo “Como me tornei um romancista”, é uma exceção no livro “Romancista por vocação” (Casa das Letras). O tom dominante é de uma racionalidade que chega a ser exasperante, pela forma como reduz o seu ofício a uma componente técnica quase burocrática.
Contrariamente à generalidade dos grandes escritores, Murakami não é propriamente um adepto da mistificação literária, nem sequer se esforça por construir uma imagem de escolhido pelos deuses.
Para si, o ato da escrita não é um processo tortuoso ou dilacerante, mas sim resultado de um método e persistência, aliado, é certo, a uma condição inata para a tarefa. “Escrever romances, basicamente, e não passa de uma opinião pessoal, é um processo bastante maçador”, insiste.
Extraídos dessa dimensão quase sobrenatural com que tantos escritores gostam de explicar a natureza do seu trabalho, os conselhos transmitidos pelo autor de “A morte do comendador” em capítulos como “Ora bem, sobre o que devo escrever?” podem até ser muito sensatos, mas estão despojados da grandeza e do arrebatamento que os tornariam inesquecíveis. Mesmo que fossem, afinal, simples matéria de ficção.
É quando Murakami abandona esse lado mais pedagógico, algo condescendente até, e nos permite um relance mais direto pela sua verdadeira natureza interior, que “Romancista como vocação” consegue ser mais convincente. Apenas sofrível como guia de escrita, o livro voa muito mais alto quando se aproxima da dimensão memorialística.
