Albert Serra fala de "Pacifiction", já em exibição nos cinemas
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Na Polinésia Francesa, o representante da República tem de lidar com o avistamento fantasmagórico de um submarino que prenuncia o reinício dos testes nucleares franceses. É "Pacifiction", o último filme de Albert Serra, em coprodução com a portuguesa Rosa Filmes, de Joaquim Sapinho. Depois de ir à competição de Cannes, o filme venceu há dias dois Césars, os mais importantes prémios do cinema francês, nas categorias de Melhor Ator, para Benoit Magimel, e de Melhor Fotografia. Em Lisboa, Albert Serra falou ao JN.
Há quem diga que este é o seu filme mais acessível.
Não sei, as pessoas que o vão ver é que têm de dizer. Talvez por ter conteúdo narrativo e pelo tema ser um retrato do mundo contemporâneo. Talvez por aí, é difícil de dizer. Ou talvez por ter um ator famoso. Mas se está a perguntar se este filme é mais fácil do que os meus outros, não o creio, sinceramente. Este talvez seja menos brusco, mais harmonioso, mas é mais difícil do que parece.
Em que sentido?
Há uma multiplicidade de camadas e uma coisa que muita gente não leva a sério, que é o humor. Sempre no limite de não saber exatamente do que te estás a rir, como espetador. No limite às vezes do politicamente correto, às vezes mesmo do grotesco. Mas é verdade que há algo de hipnótico no filme, por causa da personagem principal, que não nos cansamos de olhar e de acompanhar. Talvez seja por isso que dizem que é um filme mais fácil.
Olhando para a sua obra vê-se que gosta dos géneros cinematográficos, nem que seja para os desmontar. Aqui podemos dizer que estamos no domínio do thriller político.
Sim, um pouco metafísico, um pouco abstrato. À imagem do que é o mundo de hoje. Antes havia um inimigo que era claro. Para os idealistas era o capitalismo, tinha um rosto visível. Hoje isso não sucede e por isso é um thriller um pouco abstrato, porque não se sabe muito bem quem é o inimigo. Hoje o mal é como um vírus, não tem rosto. Já não há os idealistas a lutar contra os maus. Pelo menos sabia-se contra quem se lutava.
Também há quem defina "Pacifiction" como o seu "Apocalypse Now"...
De facto, a personagem do Marlon Brando era um pouco ambígua. É o princípio desta ambiguidade moderna, contemporânea, não se sabe bem se é um ditador ou um libertador. Algo que já vem de Napoleão, ou de Júlio César. E hoje, na era da internet, é impossível detetar o rosto ou os interesses por detrás das estruturas, que são as mesmas, seja o Estado ou os militares. Não sabemos o que está por detrás, é impossível descobri-lo.
De onde vem então esta personagem, interpretada pelo Benoit Magimel?
Representa esta espécie de perplexidade, porque se encontra no centro de tudo, deveria fazer a comunicação à população do que decidiram as altas autoridades. Teria de comunicar os ensaios nucleares, caso se realizassem, da forma a suavizar as suas consequências. O poder está cada vez mais em cima, as pessoas normais cada vez mais em baixo. Ele vê-se só, como um Dom Quixote, enfrentando moinhos imaginários.
Ainda há um aspeto mais concreto, a questão colonial. Estamos na Polinésia Francesa.
Mas o filme é uma fantasia. Uma das obsessões que tinha durante a montagem, também durante a rodagem mas sobretudo durante a montagem, foi eliminar qualquer sensação do social. Se havia um plano que tinha algo de social, fora. Todos os planos tinham de ter algo de ficção, de fantasia. Se olharem bem para o filme, não há nenhum mercado, nenhum local público. Nunca se vê uma ilha real, há sempre uma grande saturação de cores. É uma ilha de sonho, de fantasia.
A escrita e a rodagem são-lhe anteriores, mas o filme estreia numa altura em que a ameaça nuclear está de novo em cima da mesa.
O filme é involuntariamente visionário. Muita gente dizia que com a globalização todos os estados acabavam por se entender. Que com o capitalismo sem fronteiras tudo tinha uma solução. Então, a guerra na Ucrânia marca um ponto de inflexão, porque o dinheiro não pode comprar a solução, o dinheiro já não é importante. O que querem é território, ou o que seja, é o fim deste sonho de que o dinheiro pode comprar tudo e daria origem a uma paz mundial. Mas há forças superiores.
Forças superiores em que sentido?
O William Burroughs dizia, de uma forma digamos muito extrema, que o Ministério da Economia era o departamento de comunicação ou de propaganda do Militar. Ou seja, para ele, o capitalismo era um pequeno apêndice, o que governava o mundo era da esfera militar. Eu leio muitas coisas sobre História, sobretudo da Segunda Guerra Mundial. O comunismo versus o mundo ocidental que veio depois da guerra. Problemas que não desapareceram por artes mágicas. Com a globalização parecia que estava tudo mais calmo. Gosto da ideia que o filme fale também deste cinismo e desta força que escapa ao nosso controle.
O título tem várias leituras?
Não, é apenas uma ficção no Pacífico. Não há paz no título. Pelo contrário, veja como acaba o filme. Bem, quando decidimos sobre o título e ainda estava a escrever o guião, não sabia como ia acabar o filme. Mas gostava dessa ideia um pouco grotesca de um barco com quatro tipos a bordo. E havia essa ideia de paraíso perdido, de paraíso destruído. Há uma ambivalência, uma ambiguidade, mesmo na personagem do Magimel. Não sabemos se é novo ou velho, se está próximo do poder ou do povo, se é parvo ou inteligente. Vítima ou verdugo. Não se sabe o que representa exatamente.
Essa ambiguidade vem também do seu método de trabalho?
Em todo o filme há um germe que se introduz na ficção, que a põe em causa. Não é uma ficção que te quer mostrar algo, não há significados. É algo que se está a criar diante dos teus olhos. Filmo com três câmaras, filmo 500 horas, depois escolho o que quero, pela sua intensidade, pela magia, pelo mistério. Obrigo-me a montar o filme só com essas cenas. Eu funciono muito por destruição. Cada etapa destrói a anterior. O guião destrói muitas ideias boas que tinha à partida, a rodagem destrói o guião, a montagem destrói a rodagem. Mesmo hoje com a pós-produção, com tudo o que faço para combinar vários planos num só, acabo por destruir o que fiz na montagem.
Encontrou na produção portuguesa uma boa companhia para esse seu método de trabalho?
Já fizemos dois filmes antes, por isso já conhecem o meu método de trabalho. E não havia tanta pressão, não tivemos subsídio do ICA. Tínhamos mais liberdade. Todos os produtores que trabalham comigo já sabem ao que vêm, por isso seria absurdo queixarem-se.
Nesse sentido, o filme está hoje muito distante do que era inicialmente?
O filme reflete bastante bem o que havia no guião. Talvez a história de amor não esteja tão desenvolvida. Eu nunca dou o guião aos atores, nunca faço nenhum ensaio com eles. O casting local foi escolhido no último momento, os polinésios nunca tinham entrado num filme. Tenho um sistema em que é possível mexer um pouco no guião. As personagens vão ter mais importância em função dos atores que a interpretam. Pela magia, pelo fascínio que exercem em mim durante a rodagem.
Não havendo um trabalho digamos convencional de ator, foi uma surpresa o César para o Benoit Magimel?
Não, era obrigatório que o dessem a ele. Com todo o respeito pelos outros candidatos, é tão superior o que ele faz neste filme. É tão fascinante o que ele faz que mesmo eu, como realizador, que o dirigi e que montei o filme, há dois ou três momentos que ainda não percebi como é que ele fez. É ultra orgânico o que ele faz. Parece mais real que a realidade. Para mim, ver os outros atores, é como ver um filme para crianças. Já sabes o que vão dizer, o que vai passar-se, como vão representar.
Como foi o encontro com o Magimel? Porque o escolheu para esta personagem?
Ele foi sempre muito simpático, mas às vezes desaparecia ou chegava duas horas atrasado. Mas quando chegava era muito aberto a tudo o que se lhe propunha. Por vezes filmava meia hora ou 45 minutos de seguida, sem parar. E sem guião, sem ele saber quando era para parar. Pode ser um pouco desagradável para um ator, que não acredita estar a desenvolver uma personagem, a dar-lhe volume. Pelo contrário, está a perder o controlo da sua própria imagem. Normalmente, o ator tem de dar algo à câmara, mas o meu sistema é baseado na ideia contrária, a câmara capta o que o ator quer esconder. Esse momento em que o ator perdeu o seu caminho, em que perdeu o controlo, é o meu filme.
O seu cinema, tem consciência disso, é muito peculiar. Antes de começar a fazer cinema, que tipo de filmes o levaram a ter vontade de fazer cinema?
Foi uma combinação de várias coisas. Eu era cinéfilo quando era jovem, mas só decidi ser realizador mais tarde, tinha 25 ou 26 anos. Também tinha uma grande paixão pela leitura. Era muito fã de todas as vanguardas do início do século XX. Não era tanto o conteúdo das vanguardas, mas a sua atitude. Uma coisa séria, formalista, à parte do mundo real. E o laod do jogo, a ideia da arte como um jogo. Conceitos que foram recuperados nos anos 60, de uma forma mais utópica e social.
E no cinema, mais propriamente dito?
A Nouvelle Vague influenciou-me muito. Mas também muitos autores que escreveram sobre cinema, como Luc Moullet ou Robin Hood, uma literatura muito inteligente, sobretudo ao nível de analisar imagens, de perceber porque uma imagem é boa ou importante. Porque razão uma imagem dá origem a uma determinada sensação. Ou os escritos de Truffaut e Godard, o que escreveram como críticos de cinema é genial.
Há algum filme em particular que o influenciou?
Há um momento em que a Hollywood clássica podia ser uma influência. Mas um dos filmes preferidos é o "Brigadoon", do Minnelli, com essa ideia do cinema como um sonho, uma fantasia. Ou o "Sapatos Vermelhos", do Michael Powell. E o cinema negro, quando há uma tensão entre uma personagem hierarquicamente superior e outra inferior, onde não há uma visão inocente da vida.
E do cinema contemporâneo?
A partir dos anos 80 é outro mundo. Tenho a teoria de que depois do final dos anos 70 não há um único realizador americano de que nos recordaremos daqui a dez anos. Serão todos europeus ou asiáticos. Se me pedissem uma lista dos meus 10 filmes favoritos dos últimos 10 anos, não haveria nenhum americano. Em Espanha, o único foi o Buñuel, não há nenhum outro.
O cinema contemporâneo é também o reflexo das mudanças na sociedade...
A partir dos anos 60 a sociedade mudou radicalmente. Há cada vez mais imagens, começamos a estar todos rodeados de todo o tipo de imagens, a começar pela televisão. Já não se pode fazer o mesmo cinema que teve origem na narrativa de Charles Dickens. Pelo contrário, há o neo-thriller ou filmes raros como "Apocalypse Now" ou "O Caçador", com estruturas estranhas.
Depois chegaram os anos 80...
A sociedade deu uma grande volta, já não tem graça nenhuma, não se pode comparar com os anos 60. É algo muito difícil de se repetir, como a vossa revolução. O 25 de Abril de 1974 foram os vossos anos 60. Nessa altura as pessoas não queriam ter sucesso, queriam é ser rebeldes. Havia um sonho coletivo, um espírito transgressor. Como Duchamp ou Breton, eram pobres, não fizeram negócio com a sua arte.