Ian Anderson, líder e vocalista dos Jethro Tull, falou ao JN sobre o regresso aos palcos portugueses e a saga de fazer digressões em tempos de pandemia. Nesta sexta, a mítica banda inglesa sobe ao palco do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e no dia seguinte na Super Bock Arena, no Porto.
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Ian Anderson não é apenas o artista que trouxe a flauta para o rock. Com os Jethro Tull, banda de que é líder incontestado desde o final dos anos 60, ajudou a alargar fronteiras musicais. Nas vésperas dos concertos em Lisboa (Coliseu, no dia 18) e Porto (Super Bock Arena, no dia seguinte), o carismático músico inglês falou ao "Jornal de Notícias" sobre o novo disco, mas também sobre as mudanças provocadas pela covid-19.
A sua carreira é tão longa que, quando começou, o Homem nem sequer tinha ido ainda à Lua. Um verdadeiro rocker nunca se reforma?
Quando comecei a interessar-me pela música, ainda adolescente, ouvia artistas velhos, que tocavam jazz, blues, folk ou até música clássica. Como eles na altura já tinham 60 ou 70 anos, para mim foi sempre normal ver os artistas no ativo até ao fim das suas vidas. Acima de tudo, acho que escolhi a carreira certa. Se tivesse escolhido o ténis ou o futebol já me teria reformado há 40 anos. Mesmo que tivesse escolhido uma profissão menos exposta, como piloto da British Airways, já estaria reformado também há quase uma década, Por isso, sou um sortudo em ter escolhido as artes como modo de vida.
O fim dos Jethro Tull já foi anunciado por mais do que uma vez, mas acaba por haver sempre um sinal de vida, como este novo disco. É uma banda com sete vidas?
Não é bem assim. No início dos anos 70, o nosso agente pôs a circular o boato de que tínhamos acabado. Foi uma 'fake news' que ele lançou em conluio com o diretor de uma publicação musical para conseguir ter mais visibilidade. Foi uma estupidez que ele fez sem o meu conhecimento. Ao longo dos tempos houve mais algumas ocasiões em que isso foi dito. Lembro-me de ter dito há uma dúzia de anos que não haveria mais discos nossos, porque estava mais empenhado em discos a solo e concertos com orquestras. Como continuámos nos anos seguintes a dar concertos com os Jethro Tull, decidi escrever e gravar um álbum com músicas novas como um álbum da banda, o que me demorou bastante tempo. Consegui terminar finalmente no ano passado em plena pandemia. Tivemos que esperar sete meses para que a gravação em vinil ficasse concluída. Se fosse hoje, seria preciso mais de um ano! É de loucos, porque em 2004 o tempo de espera era de apenas 12 semanas. Agora toda a gente quer gravar em vinil.
É justo dizer-se que os Jethro Tull são uma 'one man band', ou seja, resumem-se a si?
Não mais do que noutra altura. Desde 1969, sou o produtor dos discos e escrevi quase todos os temas.
Nada mudou, então?
Diria que não. Desde meados da década de 1970 que trato também de toda a parte administrativa e financeira. Sempre fui eu que dirigi todos os espetáculos. Claro que os rapazes que me acompanham também são importantes. É como uma equipa de futebol. Há um esforço coletivo, mas alguém tem que tomar decisões e escolher a cor das t-shirts que vão ser usadas em palcos ou onde vamos ficar hospedados. Podemos sempre entregar estas questões a um manager ou um agente, mas, por muito que tentemos encontrar alguém competente, ele irá sempre cometer erros. Já faço isto há tempo, pelo que não cometo muitos erros. É mais fácil ser eu a executar do que estar a explicar a alguém como fazê-lo. Se isso faz dos Jethro Tull uma 'one mand band', acho que não. O que sei é que em palco ou nos palcos cada um depende do outro.
Apesar das abundantes referências bíblicas, este disco pode ser escutado como um retrato do nosso tempo?
Esse foi o meu objetivo. Criar canções baseadas em emoções humanas fortes, alguma delas expressas nas redes sociais de forma bastante desagradáveis. Li passagens da Bíblia durante o processo de escrita das canções, mas seria totalmente errado dizer-se que me apenas baseei lá. O que procurei foram referências. O mesmo acontece com as músicas que escutei nos últimos 60 anos. Quer tenhamos consciência delas ou não, todos temos referências de vária ordem. Foi bom ter criado algo conceptual, um pouco mais complexo, Satisfez a minha curiosidade intelectual e foi mais estimulante do que ter criado canções com uma única direção.
Mesmo para quem já viveu tanto, acredita que vivemos tempos particularmente estranhos e perturbadores?
Sim, acredito. Conheço muita gente que tem reavaliado a sua vida e redefinido as suas prioridades sobre o que verdadeiramente conta, devido a tudo o que tem acontecido nos últimos anos. Mas a pandemia ainda não acabou. Talvez nos nossos países o seu impacto na sociedade esteja a diminuir, mas ela não se vai embora. As pessoas vão continuar a adoecer e a irem para o o hospital, em especial se não tiverem sido vacinadas. Vamos ter que lidar com a covid como lidámos com o cinto de segurança nos carros. No início, lutámos contra, mas tivemos que aceitar como algo natural. O mesmo se passa com o fumo nos restaurantes. Não se fuma para não incomodar as outras pessoas, apesar de já poucos fumarem. Os tempos mudaram e temos que saber adaptarmo-nos.
Também reavaliou as suas prioridades devido à pandemia?
Nem por isso. A única coisa que fui impedido de fazer foi trabalhar, pelo menos na parte das digressões. Como vivo numa boa casa, foi muito fácil ficar confinado. A vida decorreu normalmente e pude fazer algum trabalho a partir de casa e ganhando até algum dinheiro. Mas para os restantes rapazes da banda e pessoal de suporte foi complicado, porque ficaram um ano e meio sem qualquer rendimento. Tornou-se difícil pagar as contas. Nesse aspeto, fui um sortudo. Contudo, estou solidário com os que vivem em apartamentos acanhados nos arranha-céus das grandes cidades. Provavelmente, nem as janelas abrem. Nessas circunstâncias, um confinamento é um inferno. Nada que se compare com o que eu passei. Apenas perdi dois anos de concertos.
Nos próximos meses os Jethro Tull vão ter mais de 50 concertos, um número muito elevado que provavelmente até muitas novas bandas não conseguiriam suportar, devido ao desgaste das viagens e não só. Em cima do palco, esquece-se da passagem do tempo?
Esses são apenas os públicos, na verdade são muitos mais... Quando estou no palco, o foco é total na exigência das músicas e das performances. Só penso nas letras que digo e nos sons que toco. Mas no resto do tempo, claro que penso em tudo o que mudou nos últimos tempos devido à covid-19, sobretudo na necessidade de cumprir todas as exigências dos protocolos sanitários.