A "iguana" assinou o concerto lendário de Vilar de Mouros 2022. The Legendary Tigerman é português e caminha para o Olimpo. Bauhaus são ainda mestres da encenação.
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Se Iggy Pop fosse o herói de uma tragédia grega, a sua "húbris" - desmesura que no seu caso significa um desafio à natureza, insistindo, aos 75 anos, em manter-se como titã global do rock"n"roll - seria alvo de um castigo exemplar por parte dos deuses: a "némesis", que talvez fosse a condenação a atuar pela eternidade diante de uma plateia vazia. Já o restabelecimento da ordem cósmica, ou a "catarsis", que fecha o movimento triádico das tragédias, bem podia ser a ascensão de The Legendary Tigerman a novo titã global do rock"n"roll (algo que poderia ser uma realidade, não fosse Paulo Furtado um português nascido em Moçambique), alguém mais jovem, mais de acordo com o que será "natural", capaz de atear o maior incêndio de verão num festival.
Descendo ao plano dos homens e das mulheres - meu deus. Naqueles primeiros 20 minutos, iniciados com "Five foot one" e dois temas-dinamite dos The Stooges, "TV eye" e "I wanna be your dog", Iggy Pop foi uma iguana de 30 anos, rastejando, contorcendo-se, desafiando o público a acompanhar a sua pedalada. As suas rugas são gloriosas, o seu corpo uma ruína majestática. E todo ele brilha, na sua cabeleira loira, os olhos azuis crispados, os movimentos de quem faz manguitos à natureza.
A partir da curta secção de toada mais pop - "Lust for life" e "The passenger" -, James Newell Osterberg passou à sabedoria de ansião, gerindo os seus tempos e energia. Mas sempre naquela tensão entre a desmesura espiritual e os limites físicos. "Sei que sou um rapaz velhote e vou morrer um dia", declarou ao público. "Mas antes vou levar-vos por uma "death trip"". E regressou aos The Stooges, justamente com essa "viagem mortífera". Foi-se emocionando - "Estar aqui com vocês significa tudo" - , avançou e recuou no tempo da sua discografia, sempre escudado por músicos irrepreensíveis, reuniu o público à lareira para explicar que "I"m sick of you" é o seu tema favorito dos The Stooges, "o mais pobre, o mais sujo, o mais jovem", guardou um último fôlego para reaparecer de casaco de couro, que novamente despiu, não há nada mais rock"n"roll do que aquele peito, e terminou com mais duas jardas, "Down on the street" e "Search and destroy". "Fucking obrigado, baby" - e a sensação é a de que ele vai atuar pela eternidade (para multidões em brasa).
Sobre os Bauhaus, que encerraram o Vilar Mouros 2022, poder-se-á elogiar o profissionalismo e o rigor com que voltaram a montar o seu teatro gótico - e a pinta magnífica de Peter Murphy, agora careca e de barba, com ar de lorde saído de uma história de Edgar Allan Poe. Confrontaram-se com alguma frieza no início do espetáculo - não é fácil atuar a seguir a Iggy Pop -, mas foram conquistando a aprovação a partir do trio "She"s in parties", "Kick in the eye" e "Bela lugosi"s dead" (o seu magnum opus), caminhando em relativo triunfo até ao fecho com a versão de "Ziggy stardust". Mas fica a sensação, comparando os dois últimos concertos do festival, que a máscara envelhece mais depressa do que o rosto, que Iggy Pop é hoje mais Iggy Pop do que os Bauhaus são os Bauhaus.
Nota final, que merecia ser extensa, sobre o concerto de The Legendary Tigerman, artista ainda no auge, protagonista do que terá sido o melhor concerto do festival (o da lenda é de Iggy Pop, o da capacidade absoluta é de Paulo Furtado). Porque mais do que inventar novas direções para o rock, Furtado foi escolhido para continuar a transportar o seu fogo. Daí a impaciência de Paulo Ventura, diretor do certame, quando Tigerman se deixou levar pelo rock e marimbou-se para compromissos e alinhamentos, partindo uma guitarra, saltando para o meio do público, atrasando todo o programa com o seu excesso. "Rock"n"roll" - e ninguém o tirava dali.
A última noite do festival completou-se com os concertos de Blind Zero, que apresentaram o seu novo trabalho a ser editado em breve, "Courage and doom", e a viagem pela história do blues e do rock protagonizada pelos algarvios The Mirandas. Cerca de 60 mil pessoas afluíram ao recinto nos três dias de Vilar de Mouros. No próximo ano, os concertos regressam ao Alto Minho entre 24 e 26 de agosto. E a esperança é a de que haja engenho e vontade para atenuar o problema das filas - que foram escandalosas sobretudo para aceder aos WC.