
Reinaldo Rodrigues / Global Imagens
Depois de apresentar oficialmente o seu mais recente romance "Desamparo" no Correntes d"Escritas 2015, a escritora Inês Pedrosa pronunciou-se, ao JN, sobre os enfoques desta nova obra, o atual estado do país e o futuro.
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Comecemos pela epígrafe neste seu novo romance "Desamparo", que diz que "a arte deve estar misturada com tudo, em vez de querer estar acima de qualquer coisa" (Albert Camus). Porque é que escolheu esta frase para o início do livro?
É uma frase de que gosto muito e me pareceu adequada ao livro. É um debate antigo, o da distinção entre a arte e a vida, e passado o tempo da Guerra Fria e do engajamento intelectual, que teve algumas consequências perversas, o comprometimento da arte passou a ser muito mal visto. A arte é comprometida, ou não é nada. Tem que dizer alguma coisa sobre o nosso sentido na vida, no mundo contemporâneo, neste tempo muito acelerado, mas muito cheio de questões prementes e urgentes na iminência de novamente entrarmos numa guerra muito forte, entre civilização e barbárie. A arte é o combate contra o totalitarismo, contra a barbárie, a massificação e a desumanização das pessoas.
Numa entrevista que deu recentemente disse que "antes de ser precisa experiência de vida para escrever, é preciso termos compaixão pelo próximo". A imaginação é, para si, mais importante que a experiência, na criação?
Quando falo de compaixão, falo da partilha da paixão alheia. É importante saber que um escritor nunca poderá ter todas as experiências do mundo, e se [por exemplo] vai escrever sobre uma personagem à beira da morte, e não esteve nesse lugar, tem que saber qualquer coisa sobre estar nesse lugar. Hoje, é sempre muito valorizada a experiência, como é também valorizada a viagem. Se andarmos sempre em trânsito e não tivermos tempo para pensar, conheceremos muito pouco. Prefiro a compaixão como alimento da imaginação, do que a experiência como mãe de todas as coisas, porque creio que o que nos faz mais falta é pensar. A imaginação vem do pensamento. Dizia a Agustina Bessa-Luís que "pensar é o ato mais violento que há", e por isso pouca gente se dedica a isso seriamente, e vai no rebanho do pensamento já feito. Penso que a arte, e o romance, que é a síntese de um tempo, é uma encenação de um tempo através de personagens e de linguagem que nos leva a esse pensamento.
Há um capítulo neste seu novo livro "Desamparo", onde se lê "Morremos sempre sozinhos". A escrita para si é essa tentativa constante de destruir a solidão?
Sim. A escrita é destruir a solidão, a nossa e a dos outros. Nós escrevemos sozinhos, mas só se escreve um romance, penso eu, porque se está muito misturado com as entranhas do mundo. É um ato solitário e ao mesmo tempo não. Quando se desdobra em personagens, deixa-se de estar só. Entra-se num mundo paralelo, mas muito real. Toda a escrita é esse combate de solidão da morte.
O Herberto Helder, um dia numa entrevista, definiu a poesia como "algo irreal, mas vivo". E escrever em prosa, o que é?
A prosa tem poesia, pode é ser mais seca. Este meu romance é mais seco que o meu penúltimo, porque a história o pede e cada universo pede uma linguagem específica, de uma voz que será sempre a mesma, mas não dispensa a poesia. Também há muita poesia narrativa. Lembro-me sempre de um momento muito comovente em que um dia, numa homenagem ao professor Eduardo Lourenço, lhe perguntaram o que era a poesia. Ele pegou num romance precisamente da Agustina Bessa-Luís, ao acaso, leu uma página e disse "Isto é poesia". Não há poesia sem prosa, nem prosa sem poesia. A poesia vive de uma cintilação que depois é trabalhada. A prosa é um trabalho contínuo. A poesia será uma corrida de cem metros, e a prosa de ficção uma maratona. Se pensarmos nos "Lusíadas" ou na "Divina Comédia" de Dante, por exemplo, são poemas épicos, narrativos. Hoje não há poemas épicos, mas há poemas grandes.
O seu novo livro fala muito da relação entre Portugal e o Brasil. Já não é a primeira vez que retrata essa temática num dos seus livros. O que é que a atrai tanto nessa afinidade de culturas?
Tenho uma relação muito forte com o Brasil. Comecei muito jovem por ler prosa e poesia do Brasil, e é outro mar da mesma língua. A história da literatura brasileira e da portuguesa confundem-se. O Padre António Vieira, pelo qual tenho um enorme fascínio, é português e brasileiro, numa época em que não havia ainda essa distinção. É uma relação que me interessa trabalhar, e faz sentido na atualidade porque vemos, desde o século XIX, a emigração de portugueses para o Brasil. Existe agora emigração do Brasil para cá, e tem sido pouco tratada na literatura. Nós julgamos que somos muito próximos, mas temos diferenças grandes. Estar no Brasil permite-me olhar para Portugal de outra maneira e vice-versa. Há um distanciamento que amplia a minha visão dos dois países. Sinto-me muito do Brasil. O trabalho da língua portuguesa passa muito por essa ligação, muito mais do que os artigos burocráticos dos acordos ortográficos, e por um conhecimento e reconhecimento entre as duas formas de brincar, trabalhar a aprofundar a língua portuguesa.
A aldeia de Arrifes, onde se passa a narrativa de "Desamparo" é um local imaginário. Criou esse local como uma metáfora para a crise atual que se vive no nosso país?
Sim. É imaginário porque podia ser qualquer aldeia portuguesa. É uma metáfora do desamparo, e um dos temas principais do livro é o regresso e a descoberta do campo. Temos tido notícias ao longo destes quatro anos, sucessivas, de pessoas que largam a cidade e vão para o campo, e há uma mudança de vida e o redescobrir de um país e de uma realidade rural, que não é aquela que também se sonhava. O campo é um lugar de partilha e de solidariedade, mas também é um lugar de violência, porque todo ele está desamparado. Neste livro fala-se de pessoas que estão no seu limite de sobrevivência, e sobre como é que elas reagem à mudança que as levou ao limite. As situações limite são muito fascinantes porque se vê o ser humano sem teatro, sem máscara, na sua reação mais heroica ou mais desesperada.
Esse fascínio vê-se no final do livro, onde se denota uma esperança, ou seja, apesar de possuir esses trechos onde evoca que estamos sozinhos e em situações limite, a Inês acredita sempre que as coisas possam ser diferentes para melhor...
Tenho que acreditar. Nunca cultivei o pessimismo. Falamos muito de crise, mas a crise é quase tão antiga quanto Portugal, e o nosso é bastante antigo. Agora o que é diferente é que estamos a educar novas gerações na desesperança total. Realmente pretendi que o fim deste livro tivesse uma luz, uma abertura e uma respiração, porque o ser humano conseguiu humanizar-se, e conseguiu no meio de tanta tragédia, também criar coisas fantásticas e descobrir outros planetas. Não acredito muito na austeridade, no "tem que ser assim, porque não há outra saída". Ora, sempre houve outras saídas e há sempre. Quando eu era jovem, não se previa que fosse existir a internet, que houvesse esta ligação ao mundo, global e instantânea. Tudo isso modificou muito o mundo. Não podemos estar tão céticos, nem sequer é muito inteligente, porque o ceticismo excessivo leva-nos ao terror, e este à paralisia, e no fundo é contra isso que este romance se ergue e é por isso que há essa abertura no final.
E quais os seus próximos planos literários?
Tenho um outro romance já na cabeça, bastante mais político do que o "Desamparo". Tenho muitos contos escritos ao longo dos últimos anos, e tenho a ideia de publicá-los em breve. Estou a organizá-los, porque gosto que façam sentido juntos. Eventualmente publicarei também as crónicas. Fiz uma edição em 2005, mas há muitas dessas crónicas que quero republicar, alterando-as. Como elas tiveram só o espaço de uma página ou meia página, quero assim fazer uma publicação de textos ensaísticos, a partir de crónicas que escrevi, dando-lhes um sentido de maior continuidade, que não tiveram nos jornais.
