Inês T. Alves: "O filme é uma forma daquelas crianças comunicarem com o mundo"
Inês T. Alves esteve dois meses na Amazónia, onde filmou as crianças de uma pequena comunidade. "Águas do Pastaza" estreia este domingo no Festival de Berlim.
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Nas margens do rio Pastaza, entre o Equador e o Perú, vive a comunidade Achua, onde as crianças participam de forma quase autónoma e independente nas mais diversas tarefas, da pesca à cozinha, da recolha de fruta da floresta amazónica à produção de artesanato, sem esquecer que são crianças. Foi aí que foi ter Inês T. Alves, primeiro sem intenção de fazer um filme, mas saindo de lá com uma obra de profunda beleza e riqueza humana. "Águas do Pastaza" foi selecionado para a seção Generation da Berlinale, onde tem hoje estreia mundial. Antes da partida para Berlim, fomos ao encontro da realizadora.
De onde partiu a ideia para este projeto?
Eu fiz um mestrado em Londres, em cinema documental. Queria mesmo sair da cidade. Londres é uma cidade intensa. Queria ir para um sítio fora da Europa, mas queria estar num sítio, não tinha vontade de andar a viajar. Queria ir para um lugar e aprender alguma coisa diferente. A ideia da Amazónia e de estar no meio da natureza já me atraía.
Como é que descobriu então esta comunidade?
Comecei à procura e encontrei um casal que se tinha proposto como voluntários na escola primária gerida por um professor da comunidade, a que se vê no filme. Na altura já não estavam lá mas explicaram-me como lá chegar. Na altura pareceu-me perfeito, estava a fazer oficinas de cinema com crianças cá em Portugal. Mas a ideia não era fazer um filme.
Como é que se desenvolveu então a ideia de fazer este filme?
Passei a maior parte do tempo lá com as crianças. Começavam a ter contactos com os telemóveis, uma coisa muito recente para eles. Só tinham eletricidade há dois meses. Passámos muito tempo a filmar, com os telemóveis e com a minha câmara. Também fiz muitas mostras de filmes, porque levei um projetor portátil. Fiquei fascinada com a autonomia deles. E propus à comunidade fazer um filme, focado nas crianças.
Eles já tinham experiência de ter pessoas de fora, mas como é que foi recebida?
Foram sempre muito abertos. É claro que havia sempre um "gap" cultural. Mas eu sentia-o muito menos com as crianças, que estavam sempre com vontade de mostrar coisas. E mais disponíveis. A maior parte delas habituou-se à presença da câmara. Acho que isso se nota no filme. A câmara já era natural, já não era um elemento estranho. Foram dois meses, mas muito intensos.
Quantas horas de material é que filmou?
Eu não fui nada preparada a nível de material técnico. Só tinha um disco externo, maior erro de sempre. E um computador pequenino, de 500 GB. O disco externo estragou-se logo no início. A probabilidade de perder tudo era muito provável. Tinha de estar constantemente a fazer o exercício de pensar se queria filmar uma coisa ou não. Foi um bom exercício não filmar tudo, não estar a toda a hora a filmar. E tive muitas vezes de rever o material e apagar. Ainda sem saber qual iria ser a narrativa.
Há alguns momentos em que o que vemos foram mesmo as crianças que filmaram...
Eles tinham muita curiosidade. Mas acontece também aqui, o fascínio pela tecnologia. Umas vezes filmavam as brincadeiras entre eles, outras vezes focavam-se nos animais. Mas o meu telemóvel acabou por se estragar e fiquei sem muitas filmagens deles.
A que distância fica a cidade mais próxima?
Puyo, no Equador, é a cidade mais próxima. A Amazónia começa ali. De lá apanha-se uma avioneta pequenina, de três lugares, é mais ou menos meia hora, até uma outra comunidade onde há uma pista de aterragem. Depois tiveram de me ir buscar e foram duas horas de canoa. É mesmo muito isolado. Afora já têm internet, mas na altura não tinham. E nunca tiveram televisão
No filme só vemos as crianças, onde é que estão os adultos?
As crianças vivem com os adultos. Vivem em casas com famílias, como aqui, os pais e os filhos. As crianças aprendem com os adultos. Mas o que se vê no filme é verdade, eles fazem de facto aquelas atividades sozinhas, entreajudam-se, essa forma colaborativa também foi o que me fascinou. Os adultos estão a viver a sua vida à parte.
Esta comunidade está em perigo de sobrevivência, os mais jovens estão a pensar sair quando forem maiores?
Eles já saem para uma comunidade a uma hora dali, onde vão estudar quando são mais velhos. Muitos vão para a cidade, para ganhar dinheiro. Acabam a trabalhar nas obras. Muitos dos que conheci já tinham estado fora e voltaram. Percebem que ali estão muito melhor, percebem a riqueza do seu território. Na cidade as condições de vida são péssimas e são ostracizados. Mas têm a curiosidade natural no ser humano de querer conhecer mais.
Não pensou duas vezes, antes de partir?
Antes de ir estava bastante apreensiva. Tive alguns ataques de ansiedade. Cometi o erro crasso de começar a ler demasiado sobre os perigos na Amazónia. Por vezes questionava-me mesmo porque é que ia. Mas quando cheguei desapareceu logo. Era mesmo o medo do desconhecido. Senti-me bem-vinda e bem acolhida. Esses medos desapareceram.
Para alguém que vinha de Londres, como é que foi sobreviver num local tão diferente?
Era difícil estar lá sozinha, a única não da comunidade, por não ter ninguém com quem refletir. O maior perigo era partir uma perna. Chove muito, há muitos declives junto ao rio e troncos que se têm de passar por cima. Estava constantemente a escorregar e a cair. Se partisse uma perna ali não era muito fácil chegar a um hospital.
E os animais?
Tive uma situação com a cobra que aparece no filme. Apareceu-me à noite atravessada no caminho. Eu ia com uma criança e só tínhamos a luz do telemóvel. Não tínhamos nenhuma catana. Olhei para trás e não via nada. Por sorte um grupo de adultos vinha na nossa direção e acabaram por matar a cobra. Se nos tivesse mordido provavelmente teríamos morrido, porque era venenosa. É com as cobras que eles têm também mais cuidado. Não é que elas andem atrás das pessoas, o perigoso é pisá-las sem querer.
Em que língua é que comunicavam?
A maioria das crianças falam entre elas em espanhol. Eles têm a língua deles, o achuar. No geral os adultos falam entre eles em achuar. Mas na escola aprenderam o espanhol e acharam que era melhor começar a falar com as crianças em espanhol. Por isso falavam comigo em espanhol.
Para além do filme, que fica, que pessoa é que saiu depois desta experiência?
Olho de forma diferente para como é que estamos a viver. Mudou muito a minha relação com o escuro. E também com o desconhecido. Aqui temos muito mais perigos do que lá. O equivalente a pisar uma cobra é sermos atropelados por um carro. E o impacto de estar no meio de uma natureza tão potente. Esse contacto com a vida de uma forma mais real.
O som é outro dos aspetos importantes do filme, sentimos mesmo que estamos ali...
O som foi também uma coisa que me impactou muito. Havia alguns lugares em que era mesmo ensurdecedor, tanto pássaro, tanto inseto. E os sons da noite. Fez-me sentir muito pequenina, mas ao mesmo tempo sempre acompanhada. Estar ali fez mudar a minha relação com a natureza, a forma como nos queremos relacionar com os recursos naturais e o respeito por esses mesmos recursos.
Como é que reagiu à seleção do filme para Berlim?
Não estava de todo à espera. Eu nem tinha a ideia de fazer um filme. Um festival com a dimensão de Berlim é muito importante. O filme acaba por funcionar como uma forma daquelas crianças comunicarem com o mundo. De elas inspirarem o mundo. E ainda para mais na Generation, focada em crianças e jovens, faz todo o sentido. O filme é sobre crianças e acho que é muito rico para crianças. E também é para adultos.