A lendária atriz francesa Isabelle Huppert interpreta o papel veridico de Maureen Kearney em "A Sindicalista", já nos cinemas portugueses.
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De nacionalidade irlandesa mas radicada em França desde meados da década de 1980, Maureen Kearney era representante sindical de uma multinacional francesa de energia nuclear quando denunciou acordos secretos que abalaram o sector nuclear francês, trazendo à luz o escândalo e defendendo mais de 50 mil empregos. Violentamente agredida na sua própria casa, é acusada de encenar o incidente e de denunciante torna-se suspeita. Isabelle Huppert mete-se na pele da personagem, em "A Sindicalista", de Jean-Paul Salomé, e que agora chega aos cinemas.
Até que ponto conhecia já a história da Maureen Kearney?
Como a maior parte das pessoas que estão a ver o filme, não conhecia a história em detalhe. Sabia que ela tinha escrito um livro. E foi através desse livro, que dera a ideia ao Jean-Paul de fazer o filme, que a descobri. Apesar de ser uma história relativamente recente, penso que de 2017, ninguém se lembrava dela.
Chegou a encontrá-la, antes de fazer o filme?
Eu não a tentei encontrar e ela também teve o bom senso de perceber que, quando fazemos um filme, mesmo que seja baseado numa personagem real, é melhor deixar trabalhar o imaginário.
Como é que se preparou para o papel?
Tinha visto fotos dela, claro, e foi ideia do Jean-Paul de seguir a sua aparência física, com aquele carrapito louro, as joias a dar nas vistas, a maneira de se vestir pouco austera, que tivemos vontade de sublinhar. Fizemos uma cópia exata do que ela é. Foi bastante divertido. E os óculos, que são essenciais, e também a maquilhagem, sempre muito carregada. São artifícios cinematográficos de que não me privei.
Enquanto cidadã francesa, quando descobriu a história, ficou surpreendida?
Sim, é uma história apesar de tudo surpreendente. Sobretudo a agressão de que foi vítima. Mas seria surpreendente em qualquer outro país. O que acho interessante no filme é que o Jean-Paul Salomé só mostra a reconstituição, não mostra a própria agressão. O facto de não a mostrar alimenta o mistério.
Esse mistério em relação à agressão torna-se o centro da história...
A reação dela colocou um problema aos investigadores, porque não teve a atitude típica das vítimas. Achei interessante, porque descobri pontos em comum com o "Elas", do Paul Verhoeven, decidindo não chamar a polícia. E gosto muito daquele gesto de pôr o baton vermelho nos lábios. É misterioso, mas também foi uma arma para ela, ou uma máscara, para se proteger.
A personagem é uma combatente, mas sente-se também uma certa fragilidade e mesmo solidão.
O próprio marido dela, a um certo momento, é invadido pela suspeita, o que confere à história um conflito interessante. Solitária, pela evolução das coisas, não foi uma escolha dela. No filme, percebemos que a vocação de sindicalista vem do pai, e que a dada altura se deixou levar pela bebida, mas sempre em pequenos toques, o que cria uma personagem próxima da realidade. Somos todos assim, compostos de diversas influências.
Apesar das dúvidas do marido, a força da família é um dos pontos muito interessantes do filme.
Sim, eles fazem um casal muito simpático. Ele trabalha no som, um mundo completamente diferente do dela. Mas nunca os encontrei, talvez tenha estado uma vez com a filha deles.
Depois de fazer o filme, com que ideia ficou da Maureen Kearney?
Um filme deve transmitir a globalidade de uma história. Ela foi confrontada com dois obstáculos. O primeiro foi a agressão, de que recuperou, de certa maneira. O segundo foi a suspeita de que foi vítima e a passagem de vítima a culpada. A certa altura aceitou ser considerada culpada, e deixar de lutar pelo reconhecimento de que foi vítima.
A relação de poder naquela indústria, entre uma mulher e um mundo de homens, também o confrontou no cinema?
É evidente que ela foi confrontada com determinadas situações, por vezes humilhantes, por ser uma mulher. Mas a Procuradora que a acusou também era uma mulher. Não há aqui nenhum maniqueísmo que culpe os homens de todos os males e apresente as mulheres apenas como vítimas. Esta história não tem nada a ver com o mundo do cinema.
Acha que a Maureen era uma mulher demasiado curiosa ou limitou-se a fazer o trabalho dela?
Penso que para começar era alguém que procurava o seu lugar. Quando alguém se lança numa causa assim é também para dar uma imagem diferente de si próprio. Vivendo uma vida regrada, na sua casa nos subúrbios, ela torna-se também uma outra pessoa, com aquele combate em que se lançou. E sabemos como os sindicatos têm uma força muito importante.
Pensa que a estreia do filme vai lançar de novo o processo na ordem do dia?
Penso que sim, tenho mesmo a certeza. O filme fala de pessoas que ainda estão vivas e algumas vão reagir.
A Isabelle continua a fazer filmes muito diferentes e a encarnar mulheres muito distintas umas das outras. O que a seduziu neste caso em particular?
Tinha muita vontade de voltar a trabalhar com o Jean-Paul. Tive muito prazer em trabalhar com ele no "Agente Haxe". Ele dá-me total liberdade de abordar as personagens como eu quero. E há qualquer coisa no universo dele que me atrai.
A sua obra é composta por filmes onde se sente sempre um grande empenho, seja temático, seja cinematográfico...
Está a atribuir-me uma generosidade e um altruísmo que não tenho. Empenho pelo cinema, isso é verdade. Mas por mim, porque somos sempre mais bem servidos por grandes papéis e grandes realizadores. Não sinto nenhuma espécie de missão. Mas é verdade que o cinema, cada vez mais, tem essa capacidade de atacar problemáticas muito diversas, políticas no sentido mais lato do que é político. Aqui no sentido mais estrito, porque o filme aborda questões politico-económicas.
A sua agenda está sempre bem organizada ou está aberta a imprevistos, a ofertas de última hora?
Espero bem que sim. Numa vida como a minha é claro que há o que está previsto, mas também há as surpresas. Embora o emprego do tempo faça com que por vezes não seja possível aceitar essas surpresas.
O teatro continua a ser outra das suas paixões.
Acabei de fazer o "Menagerie de Verre". Depois vou a Taiwan, com a tourné de "O Cerejal", do Tiago Rodrigues. E vou retomar o"Mary Said What She Said", o espectáculo do Bob Wilson que interpretei há já três anos.
Há mais projetos com o Tiago Rodrigues?
Espero bem que sim, é uma pessoa maravilhosa. E tem uma grande missão à espera dele. Vi os dois espetáculos que ele veio apresentar em Paris, "Dans la Mesure de l"Impossible" e "Catarina et la Beauté de Tuer les Fascistes". Ambos formidáveis.
Tinha trabalhado há muito com o Jean-Luc Godard. Manteve depois algum tipo de contacto com ele?
Nunca tive mais contacto com o Jean-Luc, com exceção de um telefonema divertido, porque na realidade não era comigo que ele queria falar, mas com a minha filha, que ele tinha visto num filme. Ele queria que ela desse voz a um filme sobre a história do cinema que depois foi abertura do Festival de Cannes. Foi a última vez que ouvi a voz dele.