Jaione Camborda fala de “O Corno do Centeio”, uma coprodução ibérica que já pode ser vista nas salas de cinema portuguesas.
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A história passa-se em 1971, numa ilha da Galiza. Quando uma parteira tem de fugir após um evento trágico, utiliza uma rota de contrabando para atravessar a fronteira e refugiar-se clandestinamente em Portugal. O filme chama-se “O Corno do Centeio”, é uma coprodução entre Espanha e Portugal, venceu a Concha de Ouro de San Sebastian, um dos festivais de cinema mais importantes do mundo e já está nas nossas salas. Estivemos a falar com a jovem realizadora, Jaione Camborda.
Como é que uma cineasta do País Basco se interessou por uma história da Galiza?
Eu nasci e fui criada no País Basco. O meu pai é peruano, a minha mãe é catalã. Estudei fora do País Basco e por amor à Galiza aqui fiz este filme.
Para nós a parte do filme que se passa do nosso lado é muito interessante. Que investigação fez sobre como era Portugal naquela época?
Li muitos artigos, estive com vários historiadores. Mas também recolhi bastantes testemunhos de pessoas que viveram essa época. Contaram-me muitas histórias na primeira pessoa dessa zona fronteiriça. O filme baseia-se nessas histórias. Estou sempre a dizer que o filme não é uma história real, mas tem muitas histórias reais lá dentro. Alguns desses testemunhos inspiraram muitas cenas, sobretudo as de contrabando.
Há imensas histórias da raia fronteiriça entre a Galiza e Portugal ainda por contar.
Era um contacto muito natural, marcado por essa fronteira política e geográfica, que é o Minho. Queria muito colocar em cena uma personagem galega e outra portuguesa de uma forma muito natural, Que houvesse um contacto natural entre essas culturas tão irmãs.
Trabalhar com um diretor de fotografia português, o Rui Poças, foi importante para fazer a ponte entre Portugal e Espanha?
Sim, cada pessoa que trabalhou no filme deixou a sua marca. E claro que o Rui deixou a sua. O meu trabalho como realizador foi equilibrar todas essas sensibilidades. O que o Rui Poças trouxe foi também uma estética que tem a ver com Portugal. Gostei muito dessa ideia, porque o filme a pedia.
Porque decidiu situar a ação em 1971?
Era importante que a história decorresse quando os dois países tinham ditaduras e também com grandes interdições sobre a mulher e as decisões sobre o seu corpo. Não queria que essas ditaduras fossem explícitas no filme, mas que tomassem a forma da clandestinidade, das pessoas terem de se esconder. Mas também quis que o filme fizesse pontes sobre a atualidade. Que o espetador esqueça que está nos anos 70 e os confunda com o presente.
O filme inicia-se e termina com um nascimento…
Há algo de circular, de ciclo vital. No filme transita a convivência entre eros e tanatos, entre a vida e a morte, que fazem parte do mesmo ciclo.
A maior parte das protagonistas são estreantes no cinema. Foi uma opção desde o início e como é que as encontrou?
Há uma mescla, porque há alguns atores profissionais. No caso da protagonista, é uma bailarina de dança contemporânea. No casting vi atrizes profissionais e algumas bailarinas, porque achava que podia encontrar nelas algo que precisava para a personagem. Algo muito físico, com os sentimentos a habitar dentro do corpo. Quis recuperar essa parte mamífera e física da personagem.
A Janet Novas tem uma presença muito forte ao longo de todo o filme.
Já conhecia o trabalho dela e pareceu-me muito sólida, com uma presença muito forte. O filme tem muito movimento no silêncio e ela tem a capacidade de dar esse movimento. Cada personagem necessita de uma pessoa diferente e nesse sentido não faço distinção entre profissionais e não profissionais. O desafio é que tivessem um código homogéneo.
Foi uma surpresa a Concha de Ouro de San Sebastian?
Já tinha ficado muito satisfeita em estar na seleção oficial. Já dava ao filme a necessária visibilidade. Quando começámos a ver que as críticas eram tão positivas imaginámos que poderíamos ter sorte no palmarés, mas é verdade que pensar na Concha de Ouro era algo de muito ambicioso e foi por isso uma surpresa muito bonita.
É verdade que algumas pessoas desmaiaram durante a projeção em San Sebastian?
Algumas pessoas desmaiaram na sala, mas também foi um dia muito quente. Fazia muito calor na sala. A primeira cena do filme é muito imersiva, mas a maior parte das coisas passa-se fora de campo, não há nada de explícito. A força do que está fora de campo é mais pela sugestão do que pelo que se vê. Penso que foi isso que aconteceu. O espetador não deve ter medo de ver o filme, não há nada de explícito.
O filme é feito por uma mulher, tendo mulheres como protagonistas. Nas reações ao filme nota alguma distinção entre o olhar de mulheres e de homens?
O filme coloca a Mulher no centro. Trata da capacidade de dar vida ou de não a dar. Dessa forma não podia ser de outra maneira sem ter mulheres no seu centro. No filme, o Homem é mais secundário, mas era muito importante tratar os homens com muita dignidade. É verdade que o filme interpela mais as mulheres mas há muitos homens que nos debates têm colocado muitas questões e têm-se mostrado muito agradecidos.
O que pensa deste movimento em todo o mundo de cinema feito por mulheres?
Nós passámos a vida a ver filmes fascinantes, mas feitos através do olhar de homens e temos aprendido muito sobre o mundo através deles. Mas parece-me que agora nós estamos também a enriquecer essa pluralidade e que é homem que está a ver o mundo através do nosso olhar.