Coreógrafo belga fala com o JN sobre a peça que abre esta quinta-feira a nova temporada do Teatro Rivoli. Há violência, racismo, feminismo e homofobia em destaque.
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"Qualquer tentativa terminará em corpos esmagados e ossos partidos". A afirmação proferida pelo presidente chinês Xi Jinping durante as manifestações de Hong Kong do ano passado, repetida em loop na CNN, deixou em alerta o coreógrafo Jan Martens.
"Mas ninguém se queixou e a frase passou, porque estamos a ficar indiferentes à violência", lamenta ao JN o artista belga que abre amanhã, às 19.30 horas, com o GRIP& Dance on Ensemble, a temporada do Teatro Municipal do Porto. A frase de Xi Jinping, que é uma ameaça, e que traduzida diz que "qualquer tentativa [para dividir a China] acabará em corpos esmagados e ossos quebrados" dá nome à peça. "Essa violência é replicada nos discursos dos trolls da Internet. E todos sabemos como escalaram rapidamente os discursos de Donald Trump", lembra.
Para esta inquietação, o coreógrafo recriou uma minissociedade, como gosta de fazer em todos os seus projetos, com pessoas entre os 16 e os 69 anos. "Conheço uma parte destas pessoas há muitos anos; as que estão na faixa entre os 30 e os 40 já trabalharam comigo; as três mais novas foram escolhidas por audição em Antuérpia e as mais velhas são de um ensemble de Berlim que só trabalha com bailarinos mais velhos", disse.
A própria escolha levanta questões entre as pessoas. "Porque alguns tinham muito mais formação técnica do que outros. Mas reunimo-nos durante duas semanas na Suécia, para podermos trabalhar e criar um mundo só nosso", explicou sobre o processo.
Direito à indignação
Como na sociedade, o gatilho de indignação é diferente entre as gerações. "Um elenco intergeracional permite que o público encontre vários níveis de identificação". A peça aborda temas como feminismo, as lutas LGBTI e o movimento Black Lives Matter, nascido dos protestos antirracistas motivados pela morte do afro-americano George Floyd em maio de 2020.
A esta causa veio juntar-se a da pandemia, que "deu uma nova significância à dança, porque mudou tudo. A linguagem é a de corpos aprisionados, têm agora a oportunidade de se mover", diz. Mas nem tudo se resume a violência. Há também "momentos de alegria e uma certa ironia em que se vai colocando o dedo na ferida". E há canções de protesto, porque há elos de ligação nesta força contestatária replicada durante séculos.
Essa repetição é também um elemento com que Jan Martens gosta de trabalhar nas suas coreografias. Exemplo disso é "The Dog Days are over", apresentado em 2015, no Rivoli. Oito bailarinos repetiam até à exaustão o ato de saltar. "Quando trabalhamos em grupo, abordamos os temas de forma democrática".
Condições de trabalho
Martens está preocupado com o estado da dança. Recentemente, fez um importante discurso sobre a falta de acordos de trabalho coletivo. "Mesmo na Flandres, onde trabalho e onde há um mercado muito grande de dança, há abusos sobre bailarinos que chegam de outros lugares e desconhecem a legislação", diz ao JN.
O apelo que fez foi para que grandes nomes como Anne Teresa de Keersmaeker falassem, para que o tema ganhe visibilidade. "Seria importante que se criasse legislação, pelo menos a nível europeu, para que não se perpetuem os abusos laborais", defende. Apesar disso, está otimista: "Estamos no bom caminho, mas há muito por responder. Por exemplo, como se paga um ensaio de duas horas a uma pessoa que normalmente não está naquele país?".