Dotada de um visual muito próprio, que já vímos em filmes como “Lourdes” ou “A Flor da Felicidade”, e que lhe valeu ser comparada, salvo as devidas distâncias, a Stanley Kubrick, a austríaca Jessica Hausner apresenta um dos mais originais estilos no cinema de hoje.
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“Clube Zero”, já nas salas, comprova-o, na forma como conta a história de uma professora que dá um curso sobre as vantagens de comer menos. O problema é quando as suas teorias são levadas ao extremo. A poucos dias de presidir ao júri de Locarno, recorda-se a conversa que tivemos da última vez que levou um filme a Cannes.
Como é que desenvolveu o visual do filme, nomeadamente a paleta de cores?
Quando o guião estava praticamente terminado, envolvi no processo a minha criadora de guarda-roupa e o diretor de fotografia. Trabalhámos os três em todos os meus filmes e criámos um certo estilo visual. Tem uma base realista mas depois tentamos juntar-lhe alguns elementos de loucura. Por exemplo, ao nível das cores, para criar uma atmosfera de conto de fadas. E tentámos fazer uma declaração sobre nós enquanto sociedade.
O filme tem um certo humor, mas por vezes incómodo…
Quando começo a procurar a história para um filme preciso de encontrar primeiro o tom dessa história e se ele permite esse toque de absurdo. Não é um humor imediato, o riso é um pouco estranho. E que também permite ver as nossas próprias fraquezas. É por isso que rimos, mas de uma força embaraçosa.
Porque escolheu a comida para tema do filme?
O jejum faz parte de experiências espirituais e também de várias religiões. E a comida é tão importante nas nossas sociedades, é um ritual de comunhão entre as pessoas. Imagine convidar amigos para jantar e um decidir não comer. Todos os outros vão sentir-se ofendidos. Comermos juntos é um momento importante na nossa sociedade. E há outra razão. A nutrição é utilizada no discurso político. Como por exemplo nas greves de fome, como forma radical de luta.
E esta situação de nos alimentarmos de forma consciente está na ordem do dia.
O filme começa de uma forma bastante realista. Retirei muitas das ideias que a personagem professa de um livro que explica como devemos comer devagar, mastigar devagar, pensar na comida enquanto comemos, de onde é que ela vem. Para que possamos apreciar o que comemos. É um ponto de vista que não faz mal nenhum. Os problemas começam quando se levam essas ideias ao extremo.
Na sua pesquisa encontrou alguma situação tão extrema como a do Clube Zero?
Um clube que advogue que não se deve comer não acho que exista, mas no filme uma das jovens diz que viu um vídeo na internet onde um homem diz que se alimenta apenas de luz. E sim, vimos um vídeo como esse.
Teve de pedir aos seus jovens atores para emagrecerem durante a rodagem?
Desde o início que decidimos que não íamos pedir a nenhum ator para perder peso. Seria algo de terrível para pedir a estes jovens. Em alternativa usamos vários tamanhos de roupa e trabalhámos essa questão também na maquilhagem. Acabou por fazer parte do visual exagerado que pretendemos dar ao filme.
O seu filme é também um olhar sobre a adolescência nos dias de hoje.
Nós, como pais, temos de entregar os nossos filhos a outras pessoas para que cuidem deles, porque estamos todos a trabalhar. Sinceramente, é algo que não está muito bem organizado na nossa sociedade. Há uma grande falta de atenção para com os nossos filhos. Há muitos que não têm a atenção devida, são deixados sozinhos nos quartos deles, sem ninguém que cuide deles. É errado e é um risco. Os filhos são os nossos bens mais preciosos e devíamos encontrar melhores maneiras de cuidar deles.
Isso cria-lhes a insegurança que se pressente também neste grupo do seu filme…
Os jovens de hoje são confrontados com as maiores loucuras que encontram na internet. É necessário distinguir o que está bem e o que está mal e muitos absorvem tudo sem fazer essa distinção. Estão todos debaixo de uma influência muito intensa por parte das redes sociais. Eu, enquanto mãe, acho que a nossa responsabilidade é não deixar que os nossos filhos se percam nessa loucura de verdades tão diferentes.
O seu companheiro, o Markus Binder, escreveu a música para o filme. Onde é que começa esse processo de criação?
Ele é percussionista, não é compositor de música para filmes. Mas desde muito cedo que discutimos como é que poderia ser aquele sussurro que a Senhora Novak repete com os alunos e acabámos por chegar aquele coro que se ouve no filme. Ouvimos percussões que fazem parte de rituais religiosos ou de voudou.
Quando começou a sua carreira não havia ainda muitas mulheres a expressarem-se através do cinema.
Infelizmente, de início sentia-me um pouco perdida na história do cinema. É algo que muitas mulheres realizadoras dizem, porque a perspetiva feminina há muito que não era contada em filme. Depois descobri o documentário do Mark Cousins, “Women Make Film”. Fiquei em lágrimas. Quis ligar para a escola de cinema e processá-los. Tinha ficado com a impressão de que só tinha havido homens a fazer filmes.
O seu filme é coproduzido pelo Ulrich Seidl, outro grande nome do cinema austríaco. Parece não haver uma grande rivalidade entre os dois…
A Áustria é um país pequeno e todos os realizadores se conhecem. O dinheiro para fazer filmes é tão pouco que não nos podemos dar ao luxo de lutar uns contra os outros. Pelo contrário, ajudamo-nos uns aos outros.
No início do filme faz um aviso…
Sim, não queria que as pessoas que tiveram distúrbios alimentares se sentissem ofendidas. E por isso têm a opção de sair da sala e não ver o filme.