João Botelho e os poemas de Alexandre O'Neill em "Um filme em forma de assim".
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É um filme em forma de João Botelho. Livre e criativo. Culto, mas divertido. Encenando poemas de Alexandre O'Neill, fala de nós, portugueses, da mulher, de Lisboa. A cantar, a dançar, a beber, a viver. Quando a maior parte dos filmes nos quer fazer crer que o que estamos a ver é a realidade, Botelho sublinha o cinema como arte do artifício. Seguramente que há muito não se via nada assim ao entrar na sala de cinema. Se quisermos encontrar algo de parecido temos de recuar 40 anos, até "One from the heart", de Coppola. O filme aí está, nas salas.
O Alexandre O'Neill já é uma paixão antiga.
Tenho uma dívida muito grande para com o O'Neill. Uma vez fui ter com ele à Cister por causa de uma frase que lá está, epígrafe de "Um adeus português", o filme que fiz sobre a guerra colonial: "A esta pequena dor à portuguesa tão mansa quase vegetal". E ele fez uma coisa maravilhosa, que normalmente ninguém faz: escreveu uma crónica num jornal a dizer que me tinha dado, que eu não a tinha roubado.
Que relação manteve depois com ele?
Fiquei um bocadinho amigo dele, mas não nos encontrámos muitas vezes. Ele morava a cinco minutos de minha casa, mas foi já na parte final da vida dele. Lembro-me de ir ao funeral com a Teresa Patrício Gouveia, que já não era a mulher dele. Mas tive sempre uma dívida de gratidão.
Qual é a real importância da obra de O'Neill?
Ele tocava vários instrumentos. Escrevia crónicas, publicidade. Escreveu dos poemas mais comoventes que conheço da literatura portuguesa. Sobre o amor. De Lisboa só ao nível do Cesário. E o encontro do erudito com o popular. Uma espécie de democracia da literatura.
O que há do O'Neill no João Botelho?
Gosto da vertigem do que ele foi, daquele vulcão boémio, da noite. Ele gostava de vinho, de comer, de rebentar. Eu gosto também da boémia, gosto da noite.
Acha que ele anda esquecido?
Faz parte de um grupo de grandes criadores da língua portuguesa a que ninguém liga. A Agustina, o Eça, ninguém liga. Hoje a vida é uma vertigem, ninguém tem tempo para ler romances. As pessoas leem pouco e têm muitas certezas e poucas dúvidas.
O O'Neill ia gostar do filme?
Acho que sim, porque o filme é uma festa. Não é uma biografia. Não é uma história com princípio, meio e fim. É uma reflexão sobre o cinema. Hoje há alguns filmes em que as histórias são magníficas, mas filmam-se todas da mesma maneira para encaixar nas televisões. Todos os filmes parecem séries de televisão.
O filme é uma celebração da mulher.
Das mulheres todas dele. Gosto muito quando ele diz que os poetas têm muita saída. Ele era um macho, que eu não sou. Há uma coisa com que me identifico: ele gostava mais da tarde e da noite.
Quase como subtítulo, define o filme como um divertimento em tempo de pandemia.
O filme foi rodado na pandemia, foi complicado. Tinha lá médicos e enfermeiros a escarafunchar o nariz e toda a gente. As pessoas andavam todas de máscara, só tiravam para filmar. Mas como não sou mentiroso pus no fim uma rave com máscaras. O texto do O'Neill merecia essa brincadeira com os Silvas.
Há uma liberdade criativa de que nunca prescindiu, que é também uma marca do cinema português.
Porque não temos pressão nem preocupações de rentabilidade, com o mercado, que é o pecado original do cinema. Meter a moedinha para ver imagens. O senhor Oliveira começou a fazer a sua obra aos 70. Eu já fiz umas 20 longas. É um luxo. Sei que há pouco dinheiro, mas temos de preparar muito bem e filmar rápido. E agora aprendi com o teatro, trabalho com os atores muito tempo antes.
Os atores são todos realmente fantásticos. Onde é que os descobre?
Alguns já tinham trabalhado comigo. A Crista [Alfaiate] é a descoberta, tinha-a visto no filme do Miguel Gomes. São atores do Teatro do Bairro, cantores que já tinha usado na "Peregrinação". Todos de uma grande qualidade humana. São humildes. Ao início tinha medo dos atores, medo de lhes tocar. Agora já os abraço. Tem a ver com a idade. Acho que são uma força enorme de criação.
Porquê o cartaz em forma de falo?
Tive acesso, através de um filho dele, a fotografias que o O'Neill fazia. Ninguém sabia, não há nada publicado. E tinha muitas fotografias de grafítis porno. Uma data delas. E depois tem o conto "Uma coisa em forma de assim". O cartaz é justo.