Coreógrafo explica ao JN por que razão doou à Fundação de Serralves arquivo que representa 30 anos de artes performativas em Portugal.
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O que pode levar um criador como João Fiadeiro, parisiense de gema, lisboeta de residência, a doar à cidade do Porto o espólio integral de um trabalho que digrediu pelo Mundo todo durante trinta anos e que se confunde com a história da Nova Dança Portuguesa, que ajudou a nascer e a desenvolver? Um despejo municipal, a cegueira ministerial e um namoro de dois anos com a Fundação de Serralves - o único pretendente.
O JN falou com João Fiadeiro, coreógrafo e investigador de 56 anos, no dia em que assinou o protocolo de doação do acervo à instituição presidida por Ana Pinho, que também acolhe o arquivo do cineasta Manoel de Oliveira e do arquiteto Álvaro Siza Vieira, ambos portuenses. Nesse dia, Fiadeiro, fundador da Companhia RE.AL em 1990 e do Atelier Real em 2005, duas estruturas fundamentais para gerações sucessivas de artistas emergentes, acabara de chegar de Madrid, onde apresentou "I'm here", um trabalho com quase 20 anos dedicado à artista plástica Helena Almeida (1934-2018).
Acervo raro e valioso
"A minha noção de tempo não é linear, mas quando releio o passado parece uma leitura linear", diz, para explicar que o caminho percorrido até aqui pareceu um meio para atingir um fim, sendo esse fim doar a Serralves o arquivo do Atelier Real, que guarda e documenta desde o primeiro dia, para que seja estudado, catalogado e disponibilizado.
O arquivo das artes performativas em Portugal - um acervo raro, para o qual contribui a sua natureza efémera -, foi alimentado graças à boa vontade de particulares. "Os artistas levam o arquivo no corpo", diz Fiadeiro. E o Estado não ajuda. "Só este ano abriu uma linha de apoio para projetos de investigação, práticas de arquivo e documentação do património artístico de teatro, dança e transdisciplinar", lembra.
Este contexto, argumenta, resulta da "cegueira" pública, que fez com que a sua estrutura de criação perdesse o apoio da tutela em 2015 e acabasse despejada. Resultado: um arquivo valiosíssimo encerrado dentro de uma garagem durante dois anos, os mesmos que durou o namoro com Serralves. "Sou muito resiliente, nunca me escamoteio, transformo tudo em força", diz Fiadeiro, hoje "nómada feliz".
Ao todo, serão mais de 4000 peças, entre vídeos, fotografias e documentos. São 30 anos de atividade artística, que incluem nomes como o dos pensadores José Gil e Eduardo Prado Coelho, o cineasta Edgar Pêra, o encenador João Garcia Miguel, ou nomes da dança portuguesa, como Cláudia Dias ou Tiago Guedes.
Fiadeiro está a acabar o doutoramento na Escola das Artes de Coimbra sobre "a composição em tempo real", fórmula que sempre aplicou às artes performativas mas que pode aplicar-se à economia, à antropologia ou a outras áreas. "Trabalho e sistematizo o desconhecido". É também tutor no Campus Paulo Cunha e Silva. "Estou cada vez mais a Norte", sorri. Cristina Grande, programadora de artes performativas de Serralves, agradece. "Passámos a ter um arquivo que vai permitir pensar e perspetivar o futuro. É um desafio curatorial de uma enorme confiança e responsabilidade".