O realizador João Rosas fala do seu filme de estreia na longa-metragem, “A Vida Luminosa”.
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Depois de três curtas-metragens com Francisco Neto como Nicolau, desde os seus 11 anos de idade, no que é agora o Antoine Doinel/Jean-Pierre Léaud do cinema português, a personagem regressa na primeira longa de João Rosas, “A Vida Luminosa”, agora com 24 anos. Um filme desconcertante e contagioso na forma aparentemente simples como fala do que é ser jovem hoje, com diálogos certeiros e divertidos e que criam uma forte empatia entre os dois lados do ecrã. Que mais ninguém diga que não gosta de cinema português sem ver “A Vida Luminosa”. Em estreia em todo o país, passa hoje à noite no Cinema Trindade, no Porto, com a presença do realizador.
O Francisco Melo interpretou a mesma personagem do Nicolau nas suas três curtas. Já estava previsto que iria ser ele o centro da primeira longa?
Este filme foi sempre pensado para ser feito com ele. No primeiro filme, o “Entrecampos”, não havia essa ideia de série. Mas foi o momento do encontro e a relação desenvolveu-se a partir daí. Foi com o “Maria do Mar” que pensei neste gesto. Por isso, este filme já foi escrito para ele.
Essa cumplicidade entre os dois é bem visível em todo o filme.
Uma das vantagens de trabalhar com ele é de escrever já com uma ideia muito concreta e em diálogo com ele. É uma coisa que eu tento estender às outras personagens, mas o Francisco é uma espécie de farol. Fazia-me sentido que fosse uma continuação por um lado da história anterior, mas que por outro lado funcionasse como um filme independente e que possa ser visto sem relação com as curtas.
O Francisco, entretanto, cresceu e está numa outra idade…
O filme tem como ponto de partida precisamente ta idade em que ele está, uma idade de transição entre vidas, personalidades, identidades. É um momento em que, uns mais cedo, outros mais tarde, dependendo dos contextos pessoais e sociais, as pessoas começam a dar os primeiros passos na formação da própria identidade. Em que a influência dos pais e da família acaba por ser menor. É também um momento ligado a estas dúvidas do rumo a seguir, da descoberta de novas amizades, do início de novas relações amorosas.
O João é um jovem cineasta, mas já não tem 24 anos. O que há também de si daquela personagem, do João de hoje ou de quando tinha 24 anos?
Claro que sim, há sempre elementos meus. Não só nele mas em todas as personagens. E, de forma muito clara para mim, em todos os lugares do filme. São lugares vividos, seja no quotidiano presente, sejam lugares que eu revisito por fazerem parte da minha memória afetiva da cidade. Nesse sentido o filme tem esse lado de cartografia sentimental.
E mais precisamente no Francisco?
A personagem dele é construída a partir da ideia que eu tenho desta idade e de certos elementos da vida dele, como a banda. Não quis ficar preso a uma nostalgia da minha juventude, mas que fosse uma aproximação à juventude hoje em dia, descobrir como vivem a cidade, onde é que vão, que tipo de vivências é que têm. Se sair à noite tem o mesmo significado que tinha para mim. Não quis um filme de alguém que já tem quarenta e tal anos e tem saudade dessa vida. Quis trazer a energia e a vitalidade própria desta idade e que essa energia contagiasse o próprio ritmo do filme.
Já alguma vez deu a mão a alguém que não conhecia no escuro da sala de cinema?
Literalmente, não. Mas já dei umas quantas mãos no cinema. Aí talvez haja um olhar nostálgico, mas que não queria que fosse saudosista, perante a experiência do cinema, que é muito forte. Não sei até que ponto esta geração vive o cinema da mesma maneira, em particular o cinema em sala. Todos nós vemos filmes em casa e gostamos dos filmes à mesma. Mas a experiência de ver um filme em sala ultrapassa às vezes o próprio filme.
Aqui está ligada à vida amorosa da personagem, aos seus sonhos e fantasias.
A sala de cinema é um lugar de comunhão, amorosa ou de amizade, mas também com esta massa anónima com quem partilhamos esta experiência durante duas horas no escuro. Isso tem um certo lado litúrgico. Interessava-me prestar essa homenagem, e também ligá-la a essa ideia fantasiosa, ao fantasma desta rapariga sobre a qual nada sabemos e o próprio Nicolau não sabe. Todos nós nos projetámos num espetador ou numa espetadora que vimos no cinema, sobre o qual fomos capazes de inventar uma história.
Há os filmes, mas também há os livros. Não deve ter sido só por acaso que vemos logo no início a capa de “Os Irmãos Karamazov”.
Por acaso é por acaso. O Francisco estava mesmo a ler o livro durante a rodagem. Tenho uma série de fotografias muito giras dele a ler à espera que os planos fossem montados. Aliás, devorou o livro, que é muito grande, durante a rodagem. Fez sentido por ser um elemento dele. Interessava-me muito tirar de um pedestal essas referências, os filmes, os livros, a música, que nos ajudam a viver. Que tornam a vida luminosa. Um plano de um filme, uma frase de um livro, uma melodia, são coisas que nos acompanham.
Há várias cenas do filme que se passam numa livraria e na Cinemateca…
Interessava-me trazer essa experiência da literatura e do cinema na vivência quotidiana da cidade e como enriquecem a nossa vida. Mas ao mesmo nível de uma rua ou de uma esquina. Como tudo isso faz parte deste mapa de afetos do Nicolau.
“A Vida Luminosa” é um filme de um cinéfilo, penso que não o nega, mas trata a cinefilia institucionalizada com muito humor e distância.
É um olhar irónico, mas que se traduz na própria personagem que eu interpreto, a do realizador. É um olhar irónico sobre o discurso artístico e crítico, que se leva demasiado a sério. Tentei misturar registos. Um registo literário, muito importante para mim, que é a fase da escrita, mas também em diálogo com a oralidade de cada um, e um registo cómico, da comédia existencial, que vem do Moretti e do Woody Allen. A autoironia, a capacidade de nos rirmos de nós próprios, de nos levarmos menos a sério. Se eu tenho uma Bíblia, é o livro do Bresson, mas consigo rir-me do ascetismo que o livro evoca.
Depois do documentário “Morte de uma Cidade”, sobre Lisboa, a Lisboa que mostra é uma cidade onde há pessoas que querem sair, mas outras que estão a chegar, e onde ainda se pode andar de bicicleta ou beber um copo num espaço comunitário.
A ideia de cidade-personagem atravessa um bocado os filmes todos. Apesar de se chamar “Morte de uma Cidade”, o filme acabava comigo a descobrir aquelas pessoas que trabalhavam naquele estaleiro e através delas a riqueza da cidade. Aquelas eram as pessoas que impediam a cidade de morrer. Nas ficções, parto do real que existe, mas também me interessa dar a ver uma ideia de cidade que para mim é importante. Onde há esses lugares de encontro e de partilha.
Na cena final, o espectador pode adivinhar o diálogo entre as duas personagens. É uma forma de tornar o espectador cúmplice do próprio filme?
É engraçada essa ideia de cumplicidade, não tinha pensado nesses termos. Mas é isso, de facto. Eu uso muito essa ideia da rima. Há sementes que vou lançando ao longo do filme e que reaparecem mais tarde. São piscadelas de olho que vão sim criando essa cumplicidade, para quem esteja atento. Não quero que sejam essenciais para a compreensão do filme, mas o humor também nasce dessas rimas. E, apesar do filme ser independente das curtas, há rimas que se estendem ao longo de vários desses filmes.
Mesmo os jovens têm andado alheados do cinema português. Pelas suas características, acha que o seu filme se pode transformar num fenómeno de culto?
Pelo que conheço, os jovens não são na realidade consumidores de cinema em sala. Perdeu-se esse hábito. Na minha juventude, muitas das saídas à noite começavam com uma ida ao cinema. Mas esse fenómeno não se aplica apenas ao cinema português. Mas as pessoas que viram o filme, na sessão do Indie, que foi muito bonita, um dos comentários que mais ouvi é que não parecia um filme português. As pessoas diziam isso como um elogio, mas eu gosto muito de algum cinema português.
É a eterna discussão sobre as razões do divórcio do público com o cinema português.
A discussão sobre o cinema português é sempre perigosa. Mas as pessoas não vão ao cinema por artes mágicas. Há um trabalho profundo, que outros países têm feito de forma continuada, no sistema educativo e nas políticas culturais. A França é um farol na Europa. Fazem um investimento muito grande, mas veem o cinema como uma parte importante da cultura do país. Em Portugal, não. Se não há esse trabalho…
Mas este filme pode mudar o chip, como se costuma dizer…
O filme tem muitos elementos que podem tocar pessoas muito diferentes, em particular os jovens. Muitos vieram dizer-me que era mesmo assim, que os tinha apanhado mesmo bem. Reveem-se muito no filme. Apesar de ser muito classe média lisboeta, pode dialogar com quem não faz parte desse meio. Não foi feito com essa intenção. Para mim a amizade é um lugar central do cinema. E o meu filme foi feito com amigos e não para os amigos.