
Jon Fosse: “Não escrevo sobre personagens no sentido tradicional da palavra. Escrevo sobre a humanidade”.
AFP
Norueguês Jon Fosse, de 64 anos, ganha Prémio Nobel da Literatura 2023. “A sua prosa inovadora dá voz ao indizível”, diz a Academia Sueca.
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Jon Fosse estava no campo, dentro do carro, a conduzir por um planalto perto de Bergen, na costa oeste da Noruega, rodeado por montanhas e fiordes. Era ainda manhã e o seu telefone tocou.
Quando desligou a chamada, o escritor norueguês de 64 anos, que vestia de preto e tinha a barba crescida por aparar, como é habitual, terá saído do carro e ficado uns segundos a eternizar-se na paisagem abissal. Contemplou mudamente a imensidão do Sogn, o maior e mais profundo fiorde da Noruega, que se erguia ali à sua frente.
“Fiquei surpreendido quando eles [Academia Sueca] ligaram, sim, mas não muito”, confessou depois à emissora pública norueguesa NRK. “Nos últimos 10 anos tenho-me preparado, cautelosamente, para o facto de isto poder acontecer. Mas não esperava receber o prémio hoje, mesmo que houvesse, sabia-o, uma hipótese de ganhar”.
Jon Fosse, autor nascido em 1959, em Haugesund, no bico oeste da Noruega, conhecido pelo seu minimalismo emocional e, sobretudo, pela sua produção dramatúrgica, muitas vezes comparado a Samuel Beckett, venceu o Prémio Nobel da Literatura 2023.
O galardão foi anunciado esta quinta-feira, 5 de outubro, e ser-lhe-á entregue no dia 10 de dezembro, em Estocolmo, na Suécia. Acompanha o prémio um cheque cujo valor ultrapassa os 900 mil euros.
O valor do que não se diz
A obra de Fosse, extensa e eclética, conhecida como “prosa lenta”, é redigida em Nynorsk, uma forma escrita de norueguês só usada por 10% da população, e abrange uma variedade de géneros: peças de teatro, romances, poesia, ensaios e livros infantis. Está profusamente editado em Portugal.
A Academia Sueca revelou tê-lo escolhido “pelas suas peças e prosa inovadoras que dão voz ao indizível”, em que a sua escrita é definida mais pela forma do que pelo conteúdo – e onde o que não é dito é muitas vezes mais revelador do que aquilo que o é.
“Fosse apresenta situações quotidianas que são instantaneamente reconhecíveis nas nossas próprias vidas. A sua redução radical da linguagem e ação dramática expressa as mais poderosas emoções humanas de ansiedade e impotência nos termos mais simples”, disse o júri.
“Vejo isto como um prémio à literatura que, acima de tudo, pretende ser literatura, sem outras considerações. Estou arrebatado, grato e um pouco assustado ”, resumiu depois Jon Fosse.
Segundo a editora norueguesa Samlaget, as suas peças foram encenadas mais de mil vezes em todo o mundo e os seus livros estão traduzidos em 50 idiomas.
“Não escrevo sobre personagens no sentido tradicional da palavra. Escrevo sobre a humanidade”, disse Fosse ao jornal francês “Le Monde” em 2003.
Inevitavelmente comparado com o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, Fosse ganhou em 2010 o Prémio Internacional Ibsen, um dos mais prestigiados do mundo do teatro.
Um rebelde católico
Jon Olav Fosse nasceu em 1959, em Haugesund, na costa ocidental da Noruega, filho de um gestor de uma cooperativa e de uma doméstica, e cresceu perto de Strandebarm.
A família seguia uma forma restrita de luteranismo. Foi um jovem rebelde, tocou numa banda rock, declarou-se ateu, mas aos 50 anos converteu-se ao catolicismo.
Após estudar literatura, estreou-se em 1983 com o romance “Vermelho, preto”, que avança e recua constantemente no tempo em perspetivas polifónicas.
Lutando para sobreviver como autor no início dos anos 1990, Fosse foi convidado a escrever o arranque de uma peça de teatro. “Eu sabia, senti-o, que este tipo de escrita foi feita para mim”, disse numa entrevista a um site de teatro francês.
Fosse gostou tanto daquela nova forma, a dramatúrgica, que escreveu a peça inteira. A peça era “Vai vir alguém ", e projetou-o para a cena internacional quando foi encenada em Paris em 1999.
"Mesmo nesta peça inicial, com os seus temas de antecipação temerosa e ciúme paralisante, a singularidade de Fosse já é totalmente evidente pela sua redução radical da linguagem e da ação dramática, ele expõe a ambivalência humanas na sua essência", disse presidente do comité do Nobel, Anders Olsson
Fosse ganhou depois reconhecimento internacional na peça seguinte, "And we'll never be parted", em 1994.
Um minimalista de prosa lenta
Quando tinha 7 anos, um acidente quase matou o jovem Jon Fosse. Foi um acontecimento que hoje descreve como uma "experiência que me formou enquanto escritor".
"Sem isso, duvido que tivesse vindo a ser escritor. Foi fundamental para mim. Esta experiência abriu-me os olhos à dimensão espiritual da vida, mas, sendo um marxista, tentei negar isso tanto quanto pude", disse numa entrevista à "Los Angeles Review of Books", publicada em 2022, em que comentava o lado mais metafísico da sua escrita.
Na mesma entrevista, Fosse explicou que quanto mais velho ficava, "mais sentia a necessidade de partilhar a crença religiosa com os outros", realçando os sentimentos "bons e pacíficos" da missa católica.
Sobre o seu estilo peculiar de escrita diz: "Já fui rotulado de muitas coisas, pós-modernista, minimalista, e classifiquei-me a mim próprio como escritor de 'prosa lenta'. Mas, não me quero chamar nada. Chamo-me cristão, mas é difícil para mim, porque é redutor".
E conclui: "De certa forma, sou um minimalista, claro, e de outra forma sou um pós-modernista, fui influenciado [pelo filósofo francês] Jacques Derrida. Por isso, não é necessariamente errado, mas nunca usaria tal conceito para a minha escrita, como que a dizer 'é assim'", afirmou.
Muitas obras em português
A companhia de teatro Artistas Unidos leva a palco desde 2000 peças de Jon Fosse, começando com “Vai vir alguém”, que foi encenada pela cineasta sueca Solveig Nordlund.
Nos Livrinhos de Teatro, editados pela companhia e pela Cotovia, existem já traduzidas as seguintes: “A noite canta os seus cantos”, “Inverno”, “Lilás”, “Conferência de imprensa e outras aldrabices”, e “Sou o vento/Sono/O homem da guitarra”.
A editora Cavalo de Ferro publicou outras obras de Fosse, entre as quais “Trilogia” (2022) e “Septologia I-II” (2022). Um novo volume de “Septologia”, romance em sete capítulos e três volumes, tem edição prevista em português para novembro.
Considerado uma obra-prima semiautobiográfica monumental de linguagem dessecada e minimal, “Septologia” é sobre um homem que conhece outra versão de si mesmo.
O romance é tremendamente desafiante: tem 1250 páginas e naquela imensa massa de texto não contém um único ponto final.
