Encenador e ator morreu esta segunda-feira à noite aos 73 anos. Fundador de projetos teatrais como a Cornucópia e Artistas Unidos, deixou também marca no cinema
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Não morreu a trabalhar, como sempre afirmou desejar, mas pouco faltou: apesar de doente, esteve envolvido até muito recentemente na encenação de "Vida de Artistas", comédia de Noël Coward que vai estrear já no próximo dia 23 no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa.
Jorge Silva Melo, nome fundamental das artes cénicas portuguesas do derradeiro meio século, faleceu esta segunda-feira à noite no Hospital da Luz, em Lisboa, vítima de doença oncológica.
"Homem de mil e uma vidas", como o apelidou Aida Tavares, diretora artística do Teatro São Luiz, ajudou a revolucionar o teatro português logo em 1973, quando, ao lado de Luís Miguel Cintra, fundou o Teatro da Cornucópia. Vindos do meio universitário, Melo e Cintra trouxeram para os palcos portugueses a então arredada dramaturgia contemporânea, constituindo-se como um teatro de reflexão particularmente atento à realidade cultural.
Mais do que o desacordo com a linha artística seguida, o abandono do projeto da Cornucópia, em 1979, deveu-se à vontade de experimentar outras artes.
Apaixonado pelo cinema, estreou-se como realizador em 1980, com o filme "Passagem - Ou a meio caminho", sobre a vida de Georg Büchner, e reincidiria ao longo dos anos seguintes com filmes como "Ninguém duas Vezes", "Agosto", "Coitado do Jorge", "António, um rapaz de Lisboa" ou "A Felicidade".
Mais frequentes ainda foram os seus documentários sobre artistas, que se centraram em figuras como Álvaro Lapa, Nikias Skapinakis, Ângelo de Sousa, José de Guimarães, António Sena ou Fernando Lemos.
"Como um farol"
Apesar destas incursões regulares por outras artes, Silva Melo nunca esteve muito tempo afastado do teatro. Em meados da década de 1990, criou os Artistas Unidos e, tal como aconteceu duas décadas antes, voltou a contribuir para a renovação das artes dramatúrgicas nacionais.
Até ao presente, encenaria dezenas de peças que percorreram o país, mas também diferentes espaços em Lisboa, como A Capital, no Bairro Alto, o Teatro Taborda e o Teatro da Politécnica, casa da companhia ao longo da última década.
Embora tenha dirigido alguns dos mais reconhecidos atores nacionais, o encenador tinha um gosto particular em trabalhar com novos profissionais.
Num dos seus projetos mais marcantes, "António, um rapaz de Lisboa", cruzou-se com Tiago Torres da Silva e de imediato impressionou o escritor, então ainda em início de carreira. Ao JN, o requisitado letrista recorda o impacto causado por alguém que sempre viu "como uma biblioteca, que não só sabia as coisas mas sabia também ensiná-las com grande entusiasmo".
A influência que exerceu sobre uma geração de jovens atores e encenadores que hoje ocupa as direções artísticas dos principais teatros e organismos culturais é evidente. "Ele deixou-nos uma lição tão grande que iremos transportá-lo sempre como um farol", sublinha ainda Torres da Silva.
Fora dos palcos, a sua voz fez-se escutar durante os últimos anos como símbolo da contestação à crónica escassez de apoios para a cultura. Por isso, fez questão de recusar publicamente algumas distinções que lhe foram atribuídas, como o Prémio Almada, do Instituto das Artes, com o argumento de que "não compete ao Estado" distinguir o seu trabalho artístico.